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Na contramão do resto da América Latina, o Brasil optou, em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, por “esquecer” juridicamente o Terror de Estado praticado pelos agentes da nossa mais recente ditadura. Que camadas de sentido se sobrepõem nesta decisão? O que ela revela sobre a persistência da ditadura em nossas instituições? Que concepção de Estado e de Direito ela encerra?

Textos anteriores:

Um Tribunal sem Direito

Um memorável esquecer-se: exceção e anistia


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Quando os corpos são silenciados

por Alexandre Nodari

Se pensar em morrer, cuide
Para que nenhuma lápide traia o lugar onde você jaz,
Portando uma clara inscrição com o seu nome, que o denuncia,
E trazendo o ano de sua morte, que o acusa!
Mais uma vez:
Apague os rastros!

(Isto me foi dito)

- Bertolt Brecht (tradução de Tércio Redondo)

Em 1977, Zé Celso Martinez Corrêa escrevia, em Paris, Longe do Trópico Despótico, um balanço de 68. O diretor do Teatro Oficina percebia claramente o que o AI-5 (marco a partir do qual o aparato de Terror de Estado instalado com o golpe de 1964 foi levado às últimas conseqüências) possibilitava em longo prazo: a obliteração da história: “A violenta repressão que se seguiu, o processo de lavagem cerebral e de desinformação utilizando altas tecnologias fizeram e tudo farão para que pessoas, fatos e atos desapareçam da memória social e não cheguem aos que não participaram diretamente da explosão da época”, isto é, daquele “embrião de uma revolução política e cultural no país” que se cristalizou em 68. E para “cortar o fio da história”, a ditadura militar fez desaparecer – pelo medo, pelo exílio ou pelo assassinato – as marcas que os seus agentes deixaram nos corpos alheios: “68 foi, acima de tudo, uma revolução cultural que bateu no corpo. (...) Era o corpo que arriscava; foi o corpo que arriscou; foi o corpo que avançou; foi o corpo que foi torturado também. E é o corpo que está até hoje sentindo o frio do exílio, longe dos trópicos... E a experiência da sobrevivência na noite desses anos, sua memória, está gravada no corpo... (...) O corpo social de 68 ainda está preso. Não há anistia para ele”. Poderíamos acrescentar que justamente a promulgação da Lei de Anistia, dois anos depois do relato de Zé Celso, manteve os corpos presos. Pois se, por um lado, os atores políticos cassados e perseguidos pelo regime militar puderam aos poucos regressar ao “trópico despótico”, por outro, isto se dava com a condição de que seus corpos – bem como os corpos desaparecidos – não falassem, de que se esquecesse as marcas que os atos terroristas da ditadura (e é preciso lembrar que o Terror entra em cena na história política moderna, pelas mãos dos jacobinos, como um dispositivo do Estado, a favor da Nação) deixaram. Ao se auto-outorgar o perdão – a Lei de Anistia é promulgada durante o regime militar, o que burla qualquer lógica, por mais elementar que seja, do perdão –, a ditadura apagava os rastros da sua própria existência enquanto regime de exceção. É possível comparar o Terror de Estado à máquina descrita por Kafka n’A Colônia Penal: uma máquina – comandada por um agente que é, ao mesmo tempo, promotor, juiz e executor – que tatua no corpo do suspeito (sempre culpado) a sentença (sempre de morte) e que a executa neste mesmo gesto de inscrição, jogando depois o corpo marcado e morto em uma vala. Tal máquina, relegada na narrativa de Kafka a um recôndito tropical e mantida apenas por arcaísmo de seu operador, insiste em vir à tona no Terror de Estado, no qual não há diferença entre escrita da história e tortura dos corpos. A Anistia aplicada aos operadores desta máquina implica um dispositivo ulterior, uma cirurgia plástica que apaga, ao mesmo tempo, a tortura e a sua história, a história e as suas marcas. A Anistia assim entendida é a continuação do AI-5 por outros meios. Ou dito de outro modo: ela corta o fio da história impedindo que se veja o corte do fio da história que Zé Celso identificara no projeto repressor da ditadura. Os corpos marcados se tornam ilegíveis. A resistência dos militares em abrir os seus arquivos, a insistência dos militares em queimar seus arquivos, a insistência da resistência dos militares em dizer onde estão os corpos que eles fizeram desaparecer, não significa apenas que a ditadura não acabou – significa que ela tentou, desde sempre, e continua tentando, com a conivência do mainstream do regime democrático que a seguiu, jamais existir. Ou que ela foi, no máximo, como a caracterizou um veículo da grande mídia, uma “ditabranda”.


 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.