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Na contramão do resto da América Latina, o Brasil optou, em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, por “esquecer” juridicamente o Terror de Estado praticado pelos agentes da nossa mais recente ditadura. Que camadas de sentido se sobrepõem nesta decisão? O que ela revela sobre a persistência da ditadura em nossas instituições? Que concepção de Estado e de Direito ela encerra?

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Um memorável esquecer-se: exceção e anistia

por Murilo Duarte Costa Corrêa

A questão político-jurídica suscitada pela ADPF 153 poderia lançar luzes sobre a tradição democrática brasileira e, por fim, sobre a própria estrutura decisionista que funda toda ordem jurídica – a exceção concebida nos braços da decisão soberana.

Com a ADPF, o Conselho Federal da OAB visa a dar interpretação conforme ao dispositivo de lei que anistiou “crimes conexos” aos de natureza política, a fim de excluir do corpus do conceito legal os crimes cometidos por agentes oficiais da repressão, durante a ditadura militar.

Sintomática a distorcida utilização que o Relator da ADPF 153, Min. Eros Grau, tem feito da categoria de exceção, fazendo Giorgio Agamben falar como uma marionete de Carl Schmitt. Não por acaso, Grau apresenta a tradução brasileira de Teologia Política, obra schmittiana máxima, ao lado de O nomos da terra. Encontramos a mesma argumentação de sua apresentação ao livro de Schmitt em sete casos da relatoria de Grau, seguidos por uma decisão relatada pela Min. Ellen Gracie e outra pelo ex-Min. Sepúlveda Pertence; todas as nove referendadas pelo Pleno.

O uso indevido da leitura de Agamben tem consequências práticas, políticas e jurídicas. Resulta na desaplicação da ordem constitucional a casos considerados excepcionais – medida típica de estados de exceção, baseados, segundo Schmitt, na pura força de uma decisão soberana –, justificando-se a suspensão do ordenamento e a “extração” da regra diretamente da exceção, “sem que isso implique escapar ao direito”, uma vez que, na leitura de Grau, Agamben concebera a exceção schmittianamente, como habitante do coração de toda ordem político-jurídica.

O argumento fundado na soberania da decisão ainda atribui ao STF – institucionalmente incumbido da salvaguarda da Carta Política – a função paradoxal de protagonizar esse instante milagreiro, assemelhado por Schmitt à intervenção divina, em que todo o direito é suspenso e a decisão soberana faz atuar a exceção. Grau, no entanto, ignora que Agamben só considera verdadeiramente política “a ação humana capaz de romper o nexo entre violência e direito”, desaguilhoando-o da vida, e nisso escova o decisionismo soberano a contrapelo.

O que está verdadeiramente em jogo não é o messianismo do direito à verdade e à memória, ou o direito a enterrar as vítimas invisíveis de um período de terror de Estado que ainda hoje ressoa no corpo orgânico dos cidadãos; tampouco se trata de impedir que se silenciem os relatos – pois o testemunho dos que viveram a experiência da aniquilação está perdido para sempre, e constitui o resto irrepresentável que ainda nos permite resistir.

Trata-se, sim, de impedir que a história seja subtraída do uso comum dos homens; de impedir, mais que a imposição do silêncio, que sejamos obrigados a justificar cinicamente a banalidade de gestos brutais como atos de exceção.
Está em jogo, ainda, reconhecermos que uma lei de transição – o que não passa de um eufemismo para exceção –, está em vias de superpor-se à nossa Constituição, provando definitivamente a correção da Oitava Tese sobre a História de W. Benjamin: “o estado de exceção em que vivemos é, na verdade, a regra geral.”

Se assim for, a cláusula pétrea que proíbe a concessão de graça e anistia a torturadores valerá menos que uma lei ordinária politicamente filiada aos Atos Institucionais; legitimar-se-á a Corte Constitucional brasileira a estender o regime político de exceção, como longa manus do grande aparato de terror de Estado que, a despeito de precisarmos desativá-lo, ainda hoje, encontra-se em obra, atribuindo-se competência para suspender o ordenamento jurídico e decidir com fundamento no poder soberano. Finalmente, os homens terão sido destituídos de sua história, que não se reduz ao relato, mas constitui-se nas porções de Real irredutíveis às narrativas – os restos dos acontecimentos irrepresentáveis que ainda nos permitem resistir. Negar a história é muito mais do que silenciar os testemunhos; é destruir as potências da própria experiência.

 


é um panfleto político-cultural, publicado pela editora Cultura e Barbárie: http://www.culturaebarbarie.org
De periodicidade quinzenal, está na rede desde janeiro de 2009.
Editores: Alexandre Nodari e Flávia Cera.