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   Desterro, Outubro/2012 | Editor: Moysés Pinto Neto
   Editorial: Alexandre Pandolfo, José Linck, Manuela Mattos, Marcelo Mayora, Mariana Garcia, Moysés Pinto Neto.

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  • Economia da potência, ecologia do cuidado
  • Em defesa da esquerda punitiva
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Economia da potência,
ecologia do cuidado



“ ‘A revolução ou a morte’: esse slogan não é mais a expressão lírica da consciência revoltada, é a última palavra do pensamento científico de nosso século [XX]. Isso se aplica aos perigos da espécie como à impossibilidade de adesão pelos indivíduos. Nesta sociedade em que o suícidio progride como se sabe, os especialistas tiveram que reconehcer, com um certo despeito, que ele caíra a quase nada em maio de 1968. Essa primavera obteve assim, sem precisamente subi-lo em assalto, um bom céu, porque alguns carros queimaram e porque a todos os outros faltou combustível para poluir. Quando chove, quando há nuvens sobre Paris, não esqueçam nunca que isso é responsabilidade do governo. A produção industrial alienada faz chover. A revolução faz o bom tempo.” (Guy Debord)


O ufanismo progressista grita em altos brados as vitórias do Brasil moderno, do Brasil-potência que comemora seus altos índices econômicos, seus números que fazem inveja ao Norte envelhecido e carcomido diante dos saudáveis e produtivos emergentes. Alianças improváveis entre o arcaico e o hi-tech. O novo-velho Brasil sintetizado nessa figura emblemática que é a senadora Kátia Abreu: oligárquico, com renda e terra concentrada, escravocrata e genocida, de um lado, e tecnológico, produtivo, capitalista e “potência mundial”, de outro. Como sempre, os “restos dessa história” são soterrados sem poder sequer gritar por justiça, como os índios alvos de pistoleiros no interior do Brasil que quer fazer o verde se tornar cinza, e depois verde de novo, numa dialética floresta-concreto-dinheiro cujo movimento final de “síntese” está pronto a ser justificado em nome do progresso que já tarda.

Que estejamos assistindo o ocaso do modelo que resolvemos, na retaguarda do atraso, simplesmente copiar, é algo que parece não incomodar qualquer dos legitimadores.1 O fetiche por números vazios em uma economia sem lastro real, mero jogo de espelhos (especulação), caminha ao lado de ficções político-jurídicas do “avanço do Estado de Direito” e da cidadania, ainda que isso signifique simplesmente colocar militares para vigiar mais perto os espaços em que o Estado jamais esteve presente. O mesmo jogo de espelho funciona para os intelectuais colaboracionistas que legitimam o modelo atual crendo nos velhos motes do progresso e da civilização. O pragmatismo absolve tudo.

A maior prova da flutuação no vazio especular dessas justificativas é sua própria falta de compromisso com o mais concreto do real, ou seja, com a própria possibilidade material de implementação desse modelo baseado no consumo ilimitado no Planeta Terra.2 A economia - nómos do oikos (lei/governo da casa) - destrói toda possibilidade de ecologia - logos do oikos (pensamento da casa) - cobrindo o real com seu implacável mundo homogêneo de concreto. Na dialética do verde e cinza, o heterogêneo multinatural brasileiro - sua riqueza qualitativa - é devastado pelo deserto civilizatório da homogeneidade inclusiva - pura riqueza em quantidade.

Não se trata de nostalgia nem purismo. Oposição que não se dá entre puro e impuro, mas entre pharmakon tóxico e terapêutico. A inclusão, mote central da estratégia política da nossa “tecnocracia de esquerda”, é perniciosa na sua violenta lógica homogeneizante: um único dispositivo deve reunir toda multiplicidade de formas-de-vida, agrupando singularidades sob um mesmo eixo civilizatório. Oferece-se um coquetel que combina o kit-consumo - provocador de intoxicação e adição generalizada nos seus usuários e atual modelo econômico em pleno declínio no cenário mundial3 - e o kit-cidadania - restolhos de participação política em um regime democrático corroído por trocas plutocráticas e em plena crise de legitimidade (como canta Thom Yorke, “they don’t speak for us!”), acreditando-se com isso estar em verdadeira redenção messiânica do povo brasileiro.4 Nessa disputa de pharmaka, não é um acaso que a tecnocracia brasileira ataque por meio do Ministério da Cultura, transformado em reacionário guardião da propriedade intelectual, justamente um dos pharmaka que tem o mais visível potencial de transformação do nosso espaço jurídico, político e econômico: a Internet. Fórmula resumida da nossa experiência atual da política: a cultura reduzida à propriedade, a política reduzida ao gerencialismo, a economia reduzida ao consumo. O investimento é tomado pela construção de estradas para os automóveis que fazem girar a roda do consumo, a mesma roda que destrói a ecologia psíquica com o stress do trânsito e a violência intersubjetiva impessoal protegida por exo-esqueletos de lata que ceifa diariamente muito mais vidas que os bem-noticiados assaltos; a ecologia urbana, ao transformar a cidade numa paisagem desértica regida pelos carros (“carrocentrismo”); e a ecologia terrena, provocando o aquecimento global e corrosão da variedade das paisagens multinaturais.

Assim, entre extermínio de índios, destruição de biomas, xenofobia com imigrantes haitianos, submissão da experiência política ao formalismo liberal, desprezo pelas convenções internacionais e ofensivas de estado de exceção caindo sobre os pobres para promover mega-eventos caminha o Brasil-potência, já bem parecido, embora de forma caricata, com seus modelos do Norte. O produtivismo como matriz comum à direita e à esquerda é também masculino, pois ele se opõe às antigas estéticas feministas do passivo e do receptivo.5 Por isso não é coincidência que o Brasil-potência, regido paradoxalmente pela sua “Dama-de-Ferro”, recuse-se a enfrentar a perigosíssima ascensão de um ultraconservadorismo de perfil fascista e fundamentalista que ataca diariamente as mulheres e o movimento LGBT, preferindo apegar-se a migalhas de votos para aprovação dos projetos de ferro e concreto em nome do reforço dos números a sair nos noticiários todas as noites.

Que a roda não possa girar ao infinito nesse mesmo ritmo, que haja um limite incontornável derivado da finitude dos recursos energéticos desse sistema em equilíbrio metaestável chamado Terra é algo que não abala em nada a crendice negacionista dos nossos pensadores e governantes. Que ninguém ouse colocar limites à potência por vir!, bradam os progressistas, já prontos a reproduzir a mesma arrogância violenta, soberana e delirante dos seus modelos do Norte.

Recusamo-nos a entrar no século XXI, habitar de uma nova forma nosso lugar, a construir um novo ethos com novos investimentos e sem efetivar a destruição da Terra por efeitos antropogênicos em vista. A construção desse novo equilíbrio não pode, na imanência da sociedade em que nós (não todos, mas nós apenas) estamos lançados, ser reduzida a uma simplória interdição individual, como fazem as “verdismos” ingênuos, mas a partir de uma negatividade de ruptura, uma “Grande Recusa”6 tal como o “freio-de-mão”7 da locomotiva benjaminiana; entretanto o mesmo gesto, visto de outra perspectiva, é afirmativo: como o Bartleby de Melville, prefere não. Nós preferimos não viver como “consumidores”. Contra a economia da potência nós lançamos a ecologia do cuidado.8 O mundo não como uma grande selva estranha e hostil a ser conquistada em nome da grandeza humana, mas enquanto um outro frágil que me demanda cuidado. Proposta de uma transformação que possa significar outra lógica de relação com o mundo, aberta à diversidade de heranças culturais e aos testemunhos das singularidades sufocadas para a construção de formas-de-vida não-destrutivas. Em vez do crescimento, a deiscência, imagem botânica a expressar uma relação não violenta com a fragilidade daquilo que cresce quando maduro.


1 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Desenvolvimento econômico e reenvolvimento cosmopolítico: da necessidade extensiva à suficiência intensiva.” Em: Sopro, n.51, Maio/2011. Nosso texto é totalmente parasitário em relação a este. [Voltar]

2 DEBORD, Guy. “O planeta doente”. Em: Sopro, n.44, Janeiro/2011. [Voltar]

3 STIEGLER, Bernard. Mécréance et Discrédit, 3 - L’esprit perdu du capitalisme. Paris: Galilée, 2006. pp. 114-116. [Voltar]

4 GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990 (cujo diagnóstico permanece perfeitamente atual). [Voltar]

5 DERRIDA, Jacques. Éperons: les styles de Nietzsche. Paris: Flammarion, 1978. pp. 61-63. [Voltar]

6 BLANCHOT, Maurice. “A grande recusa”. Em: A conversa infinita. São Paulo: Ed. Escuta, 2001. [Voltar]

7 BENJAMIN, Walter. “Teses sobre o conceito de história”. Em: Magia e Técnica, Arte e Política – Obras Escolhidas vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1994. [Voltar]

8 SOUZA, Ricardo Timm de. “Sistema e Totalidade: sobre idealismo, cientificismo e totalização no contexto da ecologia e da filosofia da natureza”. Em: Em torno à diferença. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.[Voltar]


Em defesa da esquerda punitiva




“Injustiça evoca sofrimento; sofrimento é incompatível com veleidade. Essa é a razão pela qual pesa sobre um escrito filosófico sobre a justiça a sombra de uma urgência que só pode ter como relativa correlação de equilíbrio a adesão incondicional à concretude do exposto: vida ex-posta”. (Ricardo Timm de Souza)



Em um texto que se tornou fundamental para o debate jurídico-penal brasileiro, Maria Lúcia Karam denunciava, nos idos dos anos 90, a emergência de uma esquerda punitiva.1 Segundo ela, estaríamos presenciando uma espécie de reciclagem dos ideais punitivistas da direita sendo apropriados por uma esquerda que se desviaria da sua crítica ao sistema punitivo enquanto parte do mecanismo capitalista e promovedor da desigualdade social para, a partir dos movimentos sociais, das demandas por criminalização da ordem econômica e do “crime organizado”, promover-se uma tentativa de inversão do funcionamento do aparelho de punição. O notável texto de Maria Lúcia Karam merece ser sempre retomado, revivido, repotencializado. Acreditamos, contudo, que a recepção crítica potencializa a herança. Em outros termos: pensamos ser mais fiéis ao texto legado por Maria Lúcia Karam com o repensar de alguns pontos a partir das circunstâncias materiais concretas em que vivemos do que pela sua repetição pura e simples. Nesse sentido, seguindo uma linha materialista marxiana que Maria Lúcia tão bem explorou, poderíamos perguntar: que função real tem desempenhado o discurso contra a esquerda punitiva na nossa sociedade?

Longe de nós a elegia ao punitivismo rasteiro, a demagogia do sacrifício de bodes expiatórios, o aplauso ao arcaísmo e à violência do sistema penal. Longe de nós a crença em messianismos social-democratas de intervenção estatal que irão redimir a população pobre por meio da implementação de direitos sociais, justificando a criminalização. Longe de nós a relegitimação do sistema punitivo que, atualmente, é genocídio em ato - basta dizer isso para o entender. No entanto, repetimos a pergunta: a que funções reais tem servido o discurso contrário à esquerda punitiva?

O que temos testemunhado é a emergência de um discurso jurídico-liberal que, promovendo o nivelamento geral das diferentes posições de poder na nossa sociedade hierárquica brasileira, esconde e ratifica aquilo que é realmente a lei anônima que nos governa. Comparar o negro da favela que sofre operações de extermínio chanceladas socialmente e alvo de apologias cinematográficas com a punição de empresários que enriquecem à custa da corrupção e apodrecimento das instituições políticas, coronéis que promovem a matança de índios e desterrados em territórios cuja lei é o revólver do pistoleiro, empreiteiros que dizimam favelas com incêndios intencionais em aliança com o olhar seletivo do poder punitivo e assim por diante é simplesmente chancelar as hierarquias sociais brasileiras deixando-se levar ingenuamente por um discurso que - repleto de boas intenções (ou de boas recompensas) - acaba servindo de pretexto teórico para algo que se explica por outros meios. O garantismo nivelador é, em outros termos, um álibi teórico para um “abolicionismo” ou minimalismo de boa-consciência que é cúmplice dos arranjos de poder vigentes na sociedade brasileira. Por essa razão, aqueles que se posicionam como realmente abolicionistas deveriam repensar sua posição em relação a esses temas, pois estamos diante de nada menos que uma armadilha: o discurso jurídico-liberal nivelador, ao escamotear as relações reais de poder, instrumentaliza o discurso abolicionista para reafirmar a hierarquia social. Pois (isso deveria ser nítido) nenhum real abolicionista pode se autorizar a ingenuidade de imaginar que o abolicionismo é simplesmente a supressão do direito penal.

Isso não significa, por óbvio, relegitimar o Estado e sua máquina de triturar pessoas chamada sistema penal. Deparamo-nos, por exemplo, com a seguinte situação: é preciso se posicionar sobre uso de algemas. A restrição atual do uso de algemas é por óbvio destinada a empresários perseguidos por crimes econômicos, não a pequenos traficantes da favela (não por acaso foi exatatamente diante desses casos, e nunca antes, que a restrição foi editada, quando os “homens de bem” passaram a alvo do sistema penal). Da mesma forma que basta a comparação entre os ambientes do “Tribunal dos ricos” (Justiça Federal) e do “Tribunal dos pobres” (Justiça Estadual), sem qualquer grande impulso crítico, para que a artificialidade do discurso das garantias apareça como sintoma da injustiça social perante a qual é necessário se posicionar. Haveria então uma contradição em ter uma posição diferente nos dois casos? Sim, é claro que há uma contradição, mas ela não é nossa, não é meramente uma contradição lógico-discursiva, e sim da própria realidade. Não fomos nós que decidimos a aplicação seletiva da norma, mas a própria configuração material das relações de poder na nossa sociedade hierárquica brasileira. Trata-se, portanto, de se posicionar concretamente diante da realidade contraditória que nos é apresentada, e não apenas residir em universalismos abstratos que acabam servindo de legitimação do status quo. Ou seja, a negativa da abstração das condições materiais é, ao fim e ao cabo, recusa da concretude da pura e simples injustiça.


1 KARAM, Maria Lúcia. “A Esquerda Punitiva”. Em: Discursos Sediciosos, n.1, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996. [Voltar]




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