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   Desterro, Novembro/2012 | Editores: Marcelo Mayora, José Linck e Mariana Garcia
   Editorial: Alexandre Pandolfo, José Linck, Manuela Mattos, Marcelo Mayora, Mariana Garcia, Moysés Pinto Neto.

  • PDF (Íntegra)
  • [sem título]
  • A Posse do Gatuno contra o Grilo da Propriedade
  • Nota sobre as polêmicas envolvendo o projeto de novo Código Penal
  • Salvador Dali
  • Outros números

Mudo, pintudão
O reizinho gay
Reinava soberano
Sobre toda nação.
Mas reinava...
APENAS...
Pela linda peroba
Que se lhe adivinhava
Entre as coxas grossas.
Quando os doutos do reino
Fizeram-lhe perguntas
Como por exemplo
Se um rei pintudo
Teria o direito
De somente por isso
Ficar sempre mudo.
Pela primeira vez
Mostrou-lhes a bronha
Sem cerimônia
Foi um Oh!!! geral
E desmaios e ais
E doutos e senhoras
Despencaram nos braços
De seus aios
E de muitos maridos
Sabichões e bispos
Escapou-se um grito.
Daí em diante
Sempre que a multidão
Se mostrava odiosa
Com a falta de palavras
Do chefe da Nação
O reizinho gay
Aparecia indômito
Na rampa ou na sacada
Com a bronha na mão.
E eram ós agudos
Dissidentes mudos
Que se ajoelhavam
Diante do mistério
Desse régio falo
Que de tão gigante
Parecia etéreo
E foi assim que o reino
Embasbacado e mudo
Aquietou-se sonhando
Com seu rei pintudo.

(Hilda Hilst)


Seria essa a descrição de um rei megalomaníaco do século XIV ou de um paizinho bondoso? Estado Absolutista, Estado Moderno, Estado Providência, Estado Social, Estado Penal, Estado Burguês, Estado Democrático de Direito. Tais carapuças recheiam páginas e páginas de tratados e manuais e teorias gerais sobre esse ente artificial explicado desde as mais variadas mitologias. Incomum aos sonolentos olhos daqueles que percorrem enfadonhas argumentações é o desvelamento de seu lado obsceno. Antes de continuar, justiça seja feita a Joseph K., que durante sua incursão ao tribunal que o julgava deparou-se com a pilha de livros pertencentes ao juiz de instrução. Para a sua surpresa, os livros, dissimulados por suas pomposas capas, eram compostos por gravuras e baixarias pornográficas. Por isso, este texto trata do Estado Estuprador.

“Colocada a paciente em posição ginecológica, passamos ao exame dos órgãos genitais e notamos: a) paciente impúbere, órgãos genitais próprios para a idade e sexo; b) grandes lábios simétricos; c) pequenos lábios simétricos e não excedendo os grandes; d) meato urinário sem nada digno de nota; e) mucosa vulvar de cor rósea com discreta rutura (sic) recente, sangrante junto à borda himenal. Esquimose e pequeno hematoma recente em parede vulvar; f) hímen anular com rutura (sic) recente, sangrante no meridiano de oito horas; g) mamas próprias para sua constituição e idade”.

Burocratas, legistas, especialistas, necrófilos em geral, descrevem a vagina em detalhes, pormenorizadamente, catalogando e incluindo nos arquivos públicos minúcias e intimidades, em nome, é claro, da tutela da “liberdade sexual”. Se o Estado Assassino garante a dominação de classe, matando diariamente jovens pobres, o Estado Estuprador garante a dominação masculina através da manutenção da “linha de demarcação mística” pensada por Virginia Woolf. Fundamental é o exame pelo poder de todos os atributos femininos, sob o pretexto de verificação da normalidade. “Mamas próprias para sua constituição e idade”, tais as de D. Evarista, nem bonita nem simpática, que “reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista”, segundo a anamnese feita por Simão Bacamarte.

O esquartejamento científico do corpo feminino na busca da verdade é a estratégia suave para o exercício do voyeurismo pelo “Comitê Central do Controle da Moralidade”, que há muito brada exclusividade na formatação do feminino selvagem em masculino civilizado, ordenando cotidianamente que “Madame Vidá seja decapitada”. O pacto da mulher com Satanás habita seu imaginário, justificando quaisquer de seus atos. A alegoria da proteção precisa ser mantida. O homem sóbrio de capa preta e peruca desfila de mãos dadas com a família e a igreja. O trio não cambaleia nunca. Até aquelas que outrora foram às praças queimar os sutiãs agora se ajoelham aos pés do pai-tribunal com agradecimentos mil pelo pseudo-afrouxamento do controle de seus úteros.

A insaciável engolidora de membros não só é descrita literariamente, como é estampada em fotografias ampliadas. Pais chocados com a audácia dos adolescentes corruptores que fazem sexo virtual com suas filhotas correm às autoridades públicas para preservar a exclusividade sobre a “coisinha” de suas Loris Lambys. Não importa que a imagem passe de mão em mão até chegar ao cubículo das cópias xerográficas para que o Dr. Bucéfalo se ocupe da acusação ou da defesa. Afinal de contas, não esqueçamos que a obediência e a submissão ao censor são sempre obtidas com o sussurro do “eu te amo”.

O mesmo Estado Estuprador, agora fantasiado de velha fofoqueira, espalha por aí que as mulas, também chamadas trem, escondem “naquele lugar horrível” – uma representante da moralidade jamais pronunciaria o nome boceta – drogas, armas e aparelhos celulares para ingressar no cárcere e presentear seus maridos, filhos, amantes e amigos com tais especiarias usualmente consumidas por grande parte da população. Por tal motivo, todas as mães, esposas, amantes e amigas dos encarcerados podem ser submetidas à revista íntima, espécie de estupro autorizado por portarias, resoluções e outras normas. O Estado Democrático de Direito, investido de sua legitimidade mágica, ordena que as senhoras tirem as calças, as calcinhas, agachem, levantem, sambem na boquinha da garrafa. Depois desse ritual de humilhação, no qual a máquina lembra as empregadas domésticas, as prostitutas e as demais mulheres de “roupa humilde, pele escura e o rosto abatido pela vida dura” o seu devido lugar (senzala/casa-grande – quarto da empregada/cobertura em bairro nobre), a ordem estará garantida; drogas, armas e celulares não ingressarão no Presídio, o “crime organizado” não comandará revoluções, rebeliões e levantes. Tecnocratas, entrevistados por 10 segundos, bradarão satisfeitos, pois devemos continuar pragmaticamente a luta pela segurança pública.

A necessidade de escrever esse texto surgiu após a leitura do laudo transcrito, retirado de um processo criminal que foi utilizado pedagogicamente em sala de aula. Talvez em razão do torpor, estado alterado de consciência que antecede o sono, nos assombramos com o relatório: aquilo que era aparentemente mais um documento protocolar tornou-se nitidamente um texto macabro, espécie de retrato da violência institucional. De modo que imediatamente nos lembramos da sensibilidade de alguns perturbados que nos acompanharam nessa tentativa de transformação da revolta em protesto: Hilda Hilst (Bufólicas; O Caderno Rosa de Lori Lamby), Franz Kafka (O processo; O novo advogado), Virgina Woolf (Three Guineas), Machado de Assis (O Alienista) e José Agrippino de Paula (Hitler Terceiro Mundo).

“Moral da estória: A palavra é necessária diante do absurdo”.


A Posse do Gatuno contra o Grilo da Propriedade





às vezes acho que todo preto como eu, só quer um terreno no mato só seu, sem luxo descalço nadar no riacho, sem fome pegando as fruta no cacho, aí truta é o que eu acho, quero também, mas em São Paulo, Deus é uma nota de cem. (Mano Brown)



Não parece banal afirmar que o furto e as demais condutas capituladas no Código Penal como crimes contra o patrimônio são, filtradas as etiquetas jurídicas, métodos “alternativos” de aquisição da propriedade. Aliás, ao longo da história métodos de utilização da posse contra a propriedade, que é constituída desde o saque, foram largamente utilizados.1 O processo de acumulação primitiva que deu origem ao capitalismo é um gigantesco furto de terras dos camponeses, levado a cabo por meio dos “decretos de expropriação do povo”, para citarmos um barbudo bastante conhecido. A estrutura fundiária brasileira foi constituída por meio da distribuição, por parte do Rei, de lotes de terra para seus amigos. Mas as terras brasileiras já tinham seus donos, os índios que por aqui moravam, de modo que o Rei e seus comparsas podem ser considerados uma quadrilha especializada em “furtos continentais”, tendo em vista que doaram o que não lhes pertencia (obra muito comum por parte de estelionatários). A exploração do trabalho escravo não é outra coisa senão espécie de extorsão da mão-de-obra, sem dúvida um crime contra o “patrimônio” dos negros sequestrados. Tudo isso devidamente legitimado pela pena de sábios juristas, legalistas da ilegalidade. Como diria um ácido crítico do sistema de justiça criminal, o direito penal não foi construído para combater as ilegalidades, mas para geri-las diferencialmente. Aos grandes furtos do passado o nobre título de propriedade, aos pequenos furtos do presente as páginas policiais dos periódicos provincianos, o título de criminosos vagabundos e a garantia de área vip nas prisões brasileiras. Tinha razão o prisioneiro francês ao escrever nas paredes de uma masmorra, aqui um ladrão que não roubou o suficiente para provar sua inocência.

A propriedade é um roubo, sustentou um lúcido estudioso. O que é roubar um banco comparado a fundar um?, pontuou outro.

Daí a sabedoria popular em reverenciar “ladrões nobres”, de que Robin Hood é o principal símbolo. Pois aquele que rouba dos ricos para dar aos pobres se coloca contra a lei, mas a favor da justiça, dimensão sonegada no acordo de otários (também chamado contrato social) que declarou que todos são iguais, mas que a propriedade é daquele que pegou primeiro. Afinal, a justiça excede o direito.

No filme Edukators, de Hans Weingartner, uma jovem pobre, chamada Jule, colide seu Fusca com a Mercedes de um rico empresário. A jovem bateu atrás, é responsável, deve pagar a dívida. O empresário é “generoso”, de maneira que aceita que a jovem pague o valor devido em diversas prestações. E assim Jule, para cumprir com sua obrigação jurídica, trabalha dia e noite, faz horas-extras e economiza. Depois de um tempo, paga o valor devido. Para Jule, tal valor era o resultado de anos de esforço. Para o empresário, mais uns centavos na sua fortuna. Juridicamente, tudo resolvido. Assim como tudo ficou resolvido para o bilionário Naji Nahas, dono do Pinheirinho, que tem ao seu lado a lei, bons advogados e uma juíza preocupada com a segurança jurídica. Nessa alquimia, a moradia de milhares de famílias foi derrubada em nome de um título.

Diante da urgência por justiça, parece mesquinho se colocar ao lado das preocupações pequeno-burguesas com a apropriação alternativa – geralmente praticada pela classe fundamentalmente furtada de nossa sociedade – das quinquilharias e dos gadgets usualmente surrupiados. Deixemos tal preocupação para as seguradoras, as empresas de segurança e os sociólogos da segurança pública. Às favas com o som do carro, o vidro do carro ou o próprio carro, lavado e polido aos domingos...!, diria o incauto comprometido com crítica radical da violência, que é a crítica da violência estrutural, ou seja, da injustiça.


1 Sobre o tema, conferir o instigante artigo de Alexandre Nodari, “[...] o Brasil é um grilo de seis milhões de quilômetros talhado em Tordesilhas”: notas sobre o Direito Antropofágico.[Voltar]


Nota sobre as polêmicas envolvendo o projeto de novo Código Penal1


  1. Os editores e o editorial desse panfleto não participaram de qualquer manifesto, carta ou abaixo-assinado – tampouco bebericaram em coquetéis – contra o anteprojeto atualmente em “discussão” no Senado Federal.

  2. “O criminoso produz não só crimes, mas também direito criminal e, além disso, o inevitável compêndio no qual esse mesmo professor lança suas conferências no mercado geral como ‘mercadorias’”.

  3. “(...) o simples juiz de instância (ou, para ir até aos últimos elos da corrente, o policial ou o guarda prisional) está ligado ao teórico do direito puro e ao especialista do direito constitucional por uma cadeia de legitimidade que subtrai seus actos ao estatuto da violência arbitrária”.

  4. Para que o Código Penal esteja à altura dos incríveis desenvolvimentos da ciência jurídico-penal, que tem virtuosamente – ano após ano – conseguido assegurar que a punição aconteça nos estritos limites dos direitos e das garantias individuais, defendemos a proposta outrora sustentada pelo Deputado liberal Lino Coutinho, em 1829: a importação de um Código dos teóricos alemães. Isso porque, além do inegável talento analítico, tais pensadores “não são filhos do país, não conhecem seus hábitos e os seus abusos, podem ver mais claramente que os próprios nacionais, os quais podem estar imbuídos dos seus hábitos e prejuízo”.

  5. Em termos político-criminais, sugerimos a legalização do furto, com sua consequente regulação pelo direito civil, agora com a natureza jurídica de aquisição alternativa da propriedade, levando em conta os argumentos do texto acima. Assim, o termo ladrão poderá ser guardado para etiquetar latifundiários e rentistas em geral.


1Foram citados respectivamente trechos de Karl Marx, Pierre Bourdieu e dos Anais do Parlamento Brasileiro.


Salvador Dali

O cara correu ali, gozou ali, chorou ali. Bebeu, bebemos, ali. Se perdeu ali. Depois se encontrou, diferente, ali. Não sabe o que ficou ali. Não sabe o que levou dali. Deseja ali, antes dali. Se imagina ali, mesmo depois de ir, ali. Estou ali, ou estamos, ali? Sou ali? Ou somos, ali? Muita gente riu ali, chorou ali. Muita gente bebeu ali. Tudo que cada um perdeu ali, ficou ali. Tudo que cada um levou dali, ficou ali. Ninguém mais sabe o que tem ali. Mas tem tanta coisa, de tanta gente, ali: Que cada demarcação é um retalho, aqui.

Um salve para que salvem, Ali.

Um salve para quem salva, Ali.

Salvadores Dali.


TEXTO EXPLICATIVO




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