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   Desterro, Dezembro/2012-Janeiro/2013 | Editores: Alexandre Pandolfo e Manuela Mattos
   Editorial: Alexandre Pandolfo, José Linck, Manuela Mattos, Marcelo Mayora, Mariana Garcia, Moysés Pinto Neto.

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Do sol a terceira cria
Baila noite, baila dia
Lá vai a Terra, meus filhos
Levando seus assassinos

Tom Zé em A Terra, Meus Filhos






Escracho


O traço marcante e vigoroso do escracho, levado a cabo por pessoas comprometidas com a elaboração do passado-recente brasileiro e latino-americano, encontra-se justamente em sua atuante e total extraoficialidade. A atualidade do gesto é justamente a de não se eximir à exposição e a de assumir posição frente ao espectro de trevas que provém do nosso tempo.

Em oposição aos postulados que governam ainda hoje a oficialidade corrente, a extraoficialidade do escracho toca lá no discurso onde esse não pode meramente superá-la. O ato rasga, pois, a oficialidade determinante. Mas não somente a suspende: o rasgo intervala e escande o discurso.

Colado, incrustado, no entanto, às bordas da oficialidade que gostaria de “suspender”, o gesto extraoficial demanda desde a sua previsão a compreensão da oficialidade que o determina ao precisar estabelecer os seus próprios limites e, pois, “dizer o seu eu”. Por assim dizer, segundo a lógica corrente - hábito que estabelece o oficial desde o presente do indicativo do verbo ser – o prefixo “extra” seria aquilo que deveria indicar a suspensão do reino mais “lógico” do oficial. Contudo, ao ser compreendido, por exemplo, simplesmente como um ato agressivo contra “bons costumes” de uma sociedade “harmônica” e bem ordenhada para o progresso, o gesto acaba sendo englobado não apenas abstratamente por essa mesma “praxe” reinante. É materialmente que as ações genocidas de assimilação daquilo que perturba a oficialidade são efetivadas em nome do movimento geral de esquecimento e silenciamento dos gritos de pavor que, não obstante, ainda ecoam do rufar dos tambores de latão, das batidas de panelas, das palmas, dos teatros de rua e dos cartazes e cartas entoadas através de megafones em frente às casas daqueles que contribuíram em inúmeras sessões de tortura. Assim se desdobram formas do eu “dizer o seu outro”. O “extra” resta grudado, afinal, no “oficial”. A gana indócil de extrair a potência do extra que compete e comparte o reino oficial é um delírio que compreende o extra em identificação com o seu oposto, isto é, nivela o extra com a regra que existe em prol da edificação da violência legitimada. Mas isso não é apenas assombroso, isso respeita meramente a constância do estado de exceção que permanece a regra, e a retidão esperada pelo fato de que muitos emudecidos não se fazem escutar apesar dos gritos que reverberam endereçados em tom de escracho aos assassinos “de estado”. Mas é também assombroso que pessoas posicionadas à esquerda se assombrem. É certo que quando provocadas, nem todas as pessoas respondem. A mediocridade comum tem respondido ao escracho com as arraigadas concepções jurídicas eivadas de bom senso e artimanhas. Vários são os proto-críticos e pseudo-intelectuais vinculados às diversas instâncias político-judiciais que se posicionam com espanto diante daquilo que foi despertado pelos atos de escracho, obviamente não coadunados com a preservação da tranquilidade contemplativa e com o arrefecimento das suas construções pré-moldadas pelo artificialismo democrático e institucional, com o qual protegem de forma cabal os seus patrimônios e a sua moral.

Seria preciso, pois, exceder o estado de exceção, como diz Benjamin. Mas a ortodoxia praticamente não é abalável porque sua profissão de fé está articulada com as vantagens seculares imiscuídas às razões do estado. Imersas à correnteza da história, as “vantagens imbricadas no todo do estado” envolvem como uma boa mãe o resto que lhe é heterogêneo e asfixia-o. O reinado etéreo da confusão do núcleo racional da vida cultural – imbróglio que se dá com os fragmentos de realidade que resistem em decomposição ao movimento de apaziguamento geral da consciência da debilidade – mantém-se hegemônico porque logrou o momento da sua realização. O estado atual das coisas erigido junto às preocupações com a sua própria manutenção e com a sua reprodução (a expansão e a repetição de um método certo e miraculoso, conjurado temerosamente ao espírito do passado e empenhado ainda em mimetizar a si próprio e as coisas) configura a cena abjeta que convoca à profanação quem se inquieta com tal imagem petrificada das ruínas.

Testemunhas sobreviventes da decadência, indignadas e enojadas, talvez com o enxofre do conteúdo recalcado e que exala a podridão, testemunhas que sobreviveram e que não definharam rodeadas por outros esqueletos, posicionam-se frente à cena denunciando as assinaturas da violência ocorridas no período ditatorial brasileiro, as quais são ainda sintomaticamente repetidas, encravadas e estampadas no cenário nacional, evidenciando o que já não pode mais ser negligenciado. Tomados pelos estilhaços do passado, esses manifestantes transmitem um testemunho do que perpassa veloz. Os escrachadores, irresignados, mergulhados junto aos restos que não cessam de emergir de certo oceano, em um instante decidem pela visada da coisa e gritam frente às casas onde os seus senhores sustentam-se precariamente como senhores de si. Eles gritam ao senhor de si:

“– Se não há justiça, há esculacho popular”.

Nas margens da Comissão da Verdade, os escrachadores não apenas contribuem para o conhecimento público das práticas levadas a cabo racional e dispositivamente pelas forças armadas do estado civil-militar autoritário que, de posse da organização e administração dos interesses sociais, assassinou inúmeras pessoas em toda a América Latina – em préstimos à hegemonia burguesa e sua ideologia que está imiscuída, com a sua prática genocida, ao sangue dos “bárbaros” de todos os tempos. Preocupados com as matanças que até hoje nunca cessaram e preocupados também em não meramente retroalimentar as disposições legais que, de acordo com o curso histórico das coisas, voltam-se repetidamente contra os que as denunciam, os escrachadores não estão incorporados ao sistema de apagamento da memória que servem (por meio de leis e decretos) muito bem aos interesses intrincados e aos cálculos sobre as vantagens econômicas do autoritarismo. Às margens da lei é que ocorre o escracho. O gesto não está submetido ao jugo e à obediência do estado, nem depende das razões desse para realizar-se. Antes um contrário. A revolta contra todas as leis que permitiram o assassinato massivo no Brasil e na América Latina é no geral uma revolta contra a lei; o gesto que revolta-se, no particular, contra as leis que se mantêm hegemônicas e que governam sub-repticiamente o estado atual das coisas, preserva hoje as suas críticas mais contundentes apesar da vestimenta democrática com que são cingidas as leis contemporâneas. Não é apenas na democracia que este gesto pode acontecer. As matanças são secretas também nos dias de hoje – como foi antes, ontem, como foi para os índios encontrados na primeira colonização. Mas as suas razões são muito bem conhecidas e é contra tais razões que os escrachadores se opõem manifestamente.

“– Se eles homenageiam, nós escrachamos! – Nós não esquecemos”.

A extraoficialidade do escracho, que não quer e não pode comprometer-se com quaisquer mecanismos de cooptação e legitimação do estado atual das coisas, rompe lá onde pôde causar rompante às estruturas nodais, onde o abalo é tal que mesmo o circo montado só para a sua exibição não permanece incólume à nudez que tal rasgo impõe. O que vem à tona é o escracho de uma situação que é insustentável, intolerável por aqueles que não deixam passar as imagens sem falar delas. O que é escrachado, pois, é o hábito recalcador e não a coisa referente à memória. Assim, como o retorno do recalcado, o escracho expõe uma faceta deste conteúdo que sempre existirá enquanto núcleo fundante e em gritos escrachados denunciam a lógica da barbárie que organiza o social.

Os escrachadores são os destruidores da oficialidade estabelecida. Através de seus atos, lançam uma intimação ao agora a respeito da criação de um espaço mnemônico. A atualidade do escracho, assim, é a sua abertura infinita. Não a suspensão para o mesmo, da magia progressista com a qual sempre dançam os cavalheiros. A instauração é o ponto de clivagem para a fuga da magia performativa.Já não se trata seriamente de uma negação abstrata, quer dizer, da negação oficial, mas de anarquia frente à oficialidade. É desde esse ponto que é possível vislumbrar um espaço destinado à memória e à elaboração do passado, lugar que ao mesmo tempo acusa o estado de exceção em que vivemos e o monopólio do uso da força. É sempre a isso que se apegam os doutrinadores de todas as espécies. É sempre disso que se trata. E da resistência a isso. Não mais se trata de local de fala ou de escuta e sim de: pasmem!, deixar-se chocar pela visão desta imagem.


Manifestação no STF


Manifestação em frente ao antigo DOPS em Porto Alegre


Manifestação em Porto Alegre frente à casa de Carlos Alberto Ponzi,
ex-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI)

Fonte das imagens:levantepopulardajuventude.blogspot.com.br


Loukánikos em manifesto na Grécia (Fonte: http://conexaopet.com.br)

Atormentado num realismo exitoso
a forma exclusiva do desespero
à sombra permanece
e ali ecoa um som
destoa.

Atormentado
sente na sentença
a centelha da vida esfumar
Sente concreto
em forma concreta
a intrusão incômoda

Espectro inquietante de corpo e terror
O grito
de dor e entrega
Descompasso excitado
mas digno
Incontrolado.





Um corpo pichado

Na areia da praia, um cadáver. Pisco os olhos. Espero. O corpo ainda está ali. Dessa vez fecho os olhos e ali me demoro, no escuro. Sinto um cheiro de morte. Não tenho certeza se é um cheiro ou uma voz. A confusão sinestésica toma o meu corpo. Sou essa mistura que une a pisada na areia com a sensação de estar chacoalhando os pés em círculos nas alturas. A condição é de entrega. Devo abrir os olhos e escrever. Meus olhos não dão conta de emoldurar o que presencio. Confundo-me com as bordas do corpo que está em decomposição. As ondas tocam a casca encostada na areia tentando levar o corpo inteiro com elas. Quero escrever na areia. Não consigo entrar no compasso da ventania, pois agora sinto junto ao turbilhão um outro tempo soprar no meu rosto. O corpo permanece ali, pichado. Houve ali um desencontro anterior. Alguém também sentiu-se impelido a escrever. Alguém pichou sua inquietude no corpo da tartaruga. Eu não pude ler a pichação. Também não pude escrever. Dei as costas ao frágil corpo-carcaça com dificuldade de ir contra o vento cortante. Meu corpo também está pichado. E continuo escrevendo




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