Meu último post acabou criando uma pequena polêmica, que me fez pensar um bocado de coisas. A grande vantagem do debate é que ela força os interlocutores a repensar seus argumentos; no que o debate escrito é ainda mais proveitoso, pois eles tem tempo pra fazê-lo com certo tempo. Devido à extensão que minha resposta tomou e pelo caráter mais genérico de algumas coisas que argumento, me permito fazê-la aqui na forma de post e não na caixa de comentários. O debate suscitado me provocou ainda outra reflexão mais conceitual, que espero publicar aqui no blog em breve.
Antes de tudo, é preciso não esquecer da ambiguidade da máxima "Não se pode comparar" que se revela no Incomparável. Aquilo que não pode ser comparado, o Incomparável, o é justamente na medida em que superou, pela comparação a tudo ou a todos. Quando dizemos que tal obra ou pessoa é incomparável, estamos dizendo que ela está um patamar acima das demais, que ela é um monumento, que ela, em suma, é intocável (tem o "corpo fechado"). A máxima, portanto, pode ter como conseqüência a monumentalização, o fechamento de toda e qualquer coisa ou pessoa, o que corresponde, a meu ver, a atomização mais extremada. O sentido político disso fica claro pra mim numa propaganda: Coca-cola, Viva as diferenças.
Na "verdade verdadeira", eu não pretendi defender a comparação em si (ainda que não a condene - tendo briga, estou dentro: assim, não tenho problema algum em dizer que Macunaíma, de Mário de Andrade, é infinitamente melhor que Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, juntos - o que não implica, de modo algum que eu jogue os últimos na lata de lixo; escolhi fazer e fiz minha dissertação mais sobre Oswald que sobre Mário). O que eu "quis dizer" é que, por vezes, usa-se da máxima "Não se pode comparar" para negar o caráter hipertextual que o mundo possui (característica que fica mais explícita na cultura, ou melhor, no que entendemos por "artes"). A linguagem "não passa" de infinitas referências tanto ao "mundo" e/ou ao "real" quanto a si mesma. Isto sempre foi e sempre será desde a antropogênese. O "mundo" não vira uma grande rede a partir da internet - esta apenas explicita um dado intrínseco, o de que a linguagem (a cultura) é uma sucessão de comentários a um grande livro não escrito que chamamos de "mundo" (ou de "real").
Dito isso, eu entendo que o "Não se pode comparar", quando referido à diferença de linguagens entre o cinema e a literatura, possa ter uma função didática (ainda que acredite - e esse será o tema de outro post que a discussão me provocou - que desde o "momento" em que se percebe que a escrita é um desenho sui generis, pois auto-referencial, tal diferença fica clara, ainda que não seja expressa tão explicitamente), é preciso tomar cuidado para não atravessar a fronteira onde o didatismo se converte em autoritarismo: é preciso, antes de enunciar a "verdade", saber se o interlocutor não a conhece.
Para explicar, vamos aos fatos. O que motivou o
post abaixo foram diversas discussões que se assemelham, não pelos conteúdos, mas pelo uso da máxima por parte de meus interlocutores. Tentei condensá-los no exemplo mais recente de conversas que tentei travar a partir de um filme. Sempre que dizia - e é importante notar que o poder dos significantes é sempre superior ao dos significados, daí o furo da teoria habermasiana da ação comunicativa - que os dois contos de Machado de Assis em que Júlio Bressane dizia (explicitamente) ter se inspirado para fazer o filme eram infinitamente
melhores que este, ouvia como resposta a máxima. Ainda tive tempo de sugerir que o filme era uma banalização monotemática de um motivo, descontextualizado, tanto na forma, quanto no conteúdo, dos contos: o caráter obsessivo-compulsivo dos personagens. Fui censurado pela máxima e não pude desenvolver o raciocínio, o que faço aqui. Não só Bressane "entrega o jogo" logo de cara - em
A causa secreta, um dos contos, ficamos o conto inteiro querendo saber o misterioso porquê do comportamente obsessivo-compulsivo de um dos personagens para nos frustarmos ao final, que não revela causa qualquer, pois ela é, de fato, secreta, o que quer dizer, infundada (o que Machado põe em cena é o modo como a autoridade, a aura, se fundamenta tão-somente no segredo sobre o seu (não)fundamento) -, já que fica óbvio, desde o começo do filme, que o comportamento obsessivo-compulsivo dos dois personagens não tem causa, sendo o objeto de desejo substituído a 3 por 4, como também, o diretor não extrai os efeitos dessa inversão formal (é o ritmo do filme, e não uma antecipação narrativa do conteúdo que deixa claro no início do filme o que só transparece no final do conto). Os dois personagens obsessivo-compulsivos de
A erva do rato não tem, desde sempre, aura. Mas Bressane não trabalha em cima deste seu caráter profano. É pura rotina - ou seja, repetição. Nada "acontece", mas tampouco este não acontecer é explorado. Antes, resvala pro que o cinema brasileiro "tem de melhor": melhor pelada a torto e a direito. E também para o riso. Se, no conto de Machado, o que está em jogo é o
processo de fetichização (ou reificação) - o comportamento obsessivo-compulsivo é mórbido e sádico, ele vai coisificando o objeto de desejo -, no filme de Bressane, estamos diante do fetiche pronto, acabado e embalado para o consumo (fica óbvio que, depois da morte da parceira que fotografava nua de todos os ângulos, o personagem interpretado por Selton Mello iria dar um jeito de continuar com seu comportamento, o que acaba fazendo fotografando o esqueleto da morta - obviedade ou explicitude que também não é explorada). A pura medialidade não alcança seu potencial crítico - não ultrapassa a esfera do entretenimento.
Pra arrematar, uma curiosidade, que resume tudo: quando perguntei a meus interlocutores se haviam lido os contos do Machado (e não foi no mesmo dia da exibição do filme), a resposta foi negativa. Se se tratam de linguagens diferentes como argumentavam, a leitura dos contos só ressaltaria isso. É comparando que se pode chegar à conclusão de que não se pode comparar. Usar a máxima para escamotear uma referência hipertextual explícita do autor (no caso, direto) seria o mesmo (na verdade, seria pior) que eu me negar a ver o filme por já ter lido os contos - o que não fiz. Meus interlocutores viram o filme e se negaram (pois, para fazê-lo bastava vontade: com acesso a internet e quinze minutos de leitura, estaria tudo resolvido) a ler os contos. Se o que fiz (i.e., seguir uma referência) é uma com-paração, prefiro ser um comparatista doente a insistir, como um mantra que um produto cultural produz seu sentido sozinho.
Atualização (5/7/2009): Pra ter uma visão diferente (e fundamentada) de
A erva do rato, vale ler os comentários de Jair Fonseca a
este artigo (o artigo em si é um malabarismo só, consegue ver amor (?!?!) no filme, realmente uma proeza).
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