Todo jurista conhece a "pirâmide" normativa de Hans Kelsen, em que as normas são ordenadas hierarquicamente (os estratos mais baixos retiram sua validade dos mais altos), e no topo da qual está a "norma fundamental". O problema, como se sabe, é que essa norma fundamental seria vazia de conteúdo, isto é, pressuposta, imaginária, ficcional - como se queira -, apenas uma maneira de dar validade ao sistema, de remetê-lo ao Um (ainda que alguns queiram ligá-la ao princípio de que os pactos devem ser cumpridos - pacta sunt servanda -, e outros, muito mais tacanhos, à Constituição). Teríamos, assim, um sistema de normas com conteúdo baseadas numa norma sem conteúdo e fictícia. Talvez, porém, fosse mais produtivo entender o Direito de maneira invertida: um sistema de normas vazias, baseados numa única norma com conteúdo: o de que a ficção que conhecemos como Direito é verdadeira. No momento histórico atual, poderíamos dizer que tal norma fundamental se cristalizaria em dois princípios: o de que não se pode alegar desconhecimento da lei, e o de que o juiz não pode se furtar de decidir uma causa. Ou seja, o conteúdo da norma fundamental seria o de que o Direito é um sistema, ao mesmo tempo (mas não paradoxalmente), aberto e fechado - o que quer dizer: potencialmente Total. Fechamento e disseminação são conexos no Direito. Para que seja "verdadeiro", ele não pode assumir seu estatuto de pura linguagem, ou melhor, tem que anulá-lo, dotando toda linguagem de uma potencial "eficácia". Como as normas não passam de linguagem sem relação necessária com as coisas (por isso são vazias, meros enunciados que precisam de uma construção ficcional que as conecte à "realidade" - se o Direito fosse pura subsunção, lembra Agamben, poderíamos abdicar desse imenso aparato judicial que é o processo), é preciso este princípio que estabeleça que alguma relação entre as palavras (normas) e as coisas (fatos) tem que se dar. É desse caráter vazio das normas, do seu embasamento na linguagem (e não nas coisas) que deriva a inflação normativa, processo inerente ao Direito. As normas não passam, no fundo, de fórmulas que se invocam para tentar estabelecer este ou aquele nexo entre as palavras e as coisas - mas todas invocam, como pressuposto, o próprio nome do Direito, isto é, a norma fundamental: que a ficção é verdadeira. É aqui que se encontra o nexo entre Direito e magia, que só por uma ilusão retrospectiva pode ser encarado como um fenômeno histórico antigo. O gosto dos juristas pela linguagem ornamental, pelos brocardos, pela linguagem ritual e pelo eufemismo provem dessa ligação: a realidade pode ser criada a partir de uma linguagem vazia (ou esvaziada), os significantes vazios devem ser eficazes. A utopia benjaminiana de um Direito não aplicado, mas só estudado, coincide com a derrogação da norma fundamental: um mundo onde os significantes vazios, a linguagem não precisa, necessariamente, se ligar as coisas, em que a ficção não precisa ser assumida como verdadeira, de modo que a própria distinção entre as duas perca totalmente seu sentido.
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