Abaixo, o texto de apresentação da minha tese de doutorado:

A tese que agora apresento nasceu de um espanto seguido de um insight. Na fase final do meu mestrado sobre a Antropofagia de Oswald de Andrade, eu relia partes de sua obra que não haviam entrado no corpus de minha dissertação, já pensando em me dedicar a alguma delas no doutorado. Foi quando me deparei com a lista de alterações textuais que a censura da ditadura militar brasileira impôs à peça O rei da vela para que ela pudesse ser liberada e encenada pelo Teatro Oficina. O susto derivou do fato de que as mudanças exigidas ou negociadas nada modificavam o drama, isto é, a ação da peça, altamente política, ideológica e mesmo panfletária, explicitamente panfletária. As alterações todas eram "apenas" formais, ou, para ser mais exato, substituíam certos substantivos, desferencializando-os e eufemizando-os. O insight consistiu em ver nesse tipo de modificação imposta pela censura, mais do que na proibição pura e simples, um paradigma de funcionamento do poder censório, ou seja, um exemplo que explicasse a fundo o que é e como funciona a censura. O pano de fundo do insight eram dois pressupostos político-epistemológicos: 1) o primeiro: levar a sério o poder, confiar na sua astúcia, imaginar sempre e toda hora que eles sempre sabem o que fazem; 2) o segundo: conceber o poder não apenas como repressor, mas também e primordialmente, como produtor - ou seja, seguindo Foucault, ver não apenas a faceta negativa, proibitiva, do poder, mas também a positiva, a criadora. Além disso, o contexto da censura a O rei da vela parecia realçar seu valor paradigmático: por um lado, a encenação da peça pelo Teatro Oficina foi um marco cultural nos anos 1960 e 1970, especialmente para o chamado Tropicalismo, e, por outro, as ditaduras latino-americanas desse período foram (e o pensamento eurocêntrico parece incapaz de compreender isso) laboratórios que adiantaram e testaram as tecnologias do poder que hoje estão em curso - especialmente no plano da dominação política e cultural, mas também no plano econômico: a Grécia que o diga, caminhando, como está, para ser um Chile de segunda classe.

O passo seguinte do percurso foi, obviamente, a pesquisa propriamente dita, que agora defendo. Tratava-se de desvendar, a partir de um caso concreto de censura, o arcabouço de sua lógica profunda, de sua ratio, ou seja, de seguir uma máxima do jovem Marx: "Os riscos do censor representam para a imprensa o mesmo que os 'Kuas' representam para o pensamento chinês. Os 'Kuas' dos censores são as categorias da literatura e, como se sabe, as categorias são a base de um conteúdo mais extenso". Os "kuas" ou "kua" são signos de 3 ou 6 linhas sobrepostas de que se compõe o I-Ching, ou seja, conjuntos de simples traços por trás dos quais há um pensamento, um saber complexo que pode ser decifrado. O que eu não sabia, à época do início da empreitada, era o quão extenso era esse "conteúdo mais extenso" aos quais os riscos e alterações dos censores serviam de índices. A tentativa de desvelar, a partir de um exemplo concreto, a teoria da linguagem que guia a censura fez a investigação se ramificar, um tanto erraticamente, em uma série diversa e múltipla de fronts: os casos de censura durante a ditadura militar brasileira e o discurso oficial que a fundamentava; a formulação da censura pela teoria política moderna; o caso clássico do banimento dos poetas da República de Platão; a reivindicação da função censora por artistas e jornalistas; a magistratura do Censor da Roma antiga; o conceito psicanalítico de censura; a relação entre censura e direitos autorais, etc. Havia, apesar da disparidade de fontes, períodos e localidades sobre os quais me debrucei, um certo padrão no discurso censório e no discurso sobre a censura. Tal padrão se mostrava visível, para começar, no vocabulário sensorial, corpóreo, médico-biológico utilizado para caracterizar a necessidade da censura: o perigo da corrupção, contaminação, doença, infecção, etc. Ele se revelava também no âmbito de atuação atribuído à censura: a esfera aonde a lei não chega, a esfera dos costumes, dos comportamentos, da vestimenta, do discurso, da arte, etc. A censura aparecia, na quase totalidade dos discursos em sua defesa, como um suplemento à lei, mas um suplemento de tipo especial, sem o qual a própria lei não se sustentaria: um suplemento fundamental, se me permitem o oxímoro quase derrideano. Além disso, no discurso censório, política e moral dificilmente se diferenciavam: um vício moral poderia levar à dissidência política, assim como o teatro poderia levar a uma reviravolta na hierarquia civil.  

O desafio que se apresentava era conceitualizar tal padrão, estabelecer terminológica e argumentativamente o regime dessa tecnologia de poder que atende pelo nome de censura.  O primeiro passo que dei na tentativa dessa conceitualização foi afirmar a inseparabilidade entre o censo (contagem e classificação), por um lado, e a censura (controle e proibição), por outro. Tal inseparabilidade não aparecia apenas no Censor da Roma antiga, responsável tanto pelo censeamento da população quanto pela regulação de seus costumes, mas no discurso censório como um todo, especialmente naquele dirigido contra a arte: assim, Platão expurga a poesia de sua polis ideal em nome do metron, e uma série de proibições modernas de obras artísticas se dão contra o excesso, e em nome da moderação ou da temperança. Se toda medida censora aplicava-se para manter ou criar uma medida, então, era possível deixar de compreender a censura como pura arbitrariedade obscurantista, tendo como motivo ou objetivo a manutenção ou instituição de um padrão definível.

A segunda grande etapa de rearranjo conceitual do material pesquisado se deu depois da leitura de A vida sensível, de Emanuele Coccia. Apesar de grande parte das leituras contemporâneas da censura relacionarem-na à verdade, concebendo-a como uma forma de mascarar, ocultar ou banir verdades indesejáveis, ou então, de produzir verdades dóceis, a verdade e a mentira não parecem ser, em absoluto, o campo em que a censura age, algo que se percebe claramente nas defesas, teorizações e reivindicações da censura, sejam clássicas, sejam modernas. A produção ou destruição da verdade parece ser um sub-produto, um dano colateral da censura, que se preocupa muito mais pelos efeitos sensíveis que um discurso, uma imagem, um costume, seja verdadeiro, seja falso, pode produzir: ela deve evitar a contaminação sensorial-moral-política. De fato, uma rápida pesquisa em qualquer arquivo de aparatos censores mostra que obras e discursos favoráveis ao regime de plantão foram banidas devido a forma em que os apoios se apresentavam. A censura atua, antes de mais nada, nos modos e nas modas, nos costumes, e almeja estabelecer e controlar o regime de funcionamento e circulação do sensível, por meio de sua hierarquização e avaliação político-moral.

O último passo na formulação do padrão do poder censório só ficou claro para mim muito recentemente, o que talvez explique certas inconsistências retóricas e argumentativas presentes na minha tese. Aliás, a caracterização que faço do texto como "ensaio" não remete a alguma teoria ou metodologia específica do "ensaio", seja de Montaigne, um de meus pensadores preferidos, seja de Adorno (o ensaio como forma), mas deve ser tomada literalmente: como uma tentativa, uma preparação provisória, um esboço que talvez nunca chegue a sua forma definitiva. Seja como for, as fontes terminaram por me levar à idéia de que a censura é a medida que regula o sensível, normatizando e controlando a passagem do interno ao externo, as internalizações e externalizações de imagens pelos sujeitos. A censura visa con-formar o sujeito a uma imagem político-moral de conduta, e, para tanto, deve buscar interiorizá-la, e controlar exteriorizações não desejáveis, moldando-as a um exemplo. A fonte do poder e também da necessidade da censura é o hiato que existe entre o ser e o aparecer sociais: o poder político-moral, enquanto tendencialmente distinto da força física, não consegue, ou, ao menos, não tem a certeza de conseguir, penetrar no âmago do sujeito, nas consciências ou nas vísceras - ele só pode agir sobre as manifestações e expressões: daí a necessidade, para o poder, não só da censura, quanto da propaganda. A censura existe e existirá enquanto não se inventar uma máquina de ler e produzir pensamentos e instintos. Na medida em que a lei só pode atingir ações, atos, existe sempre a possibilidade de mimetizar, falsificar, fingir, aparentar, por meio de uma série de declinações que o poder censório tenta controlar.

Essa determinação do campo e modus operandi da censura me permitiu entender melhor em que consistia o poder político da arte e o porquê dos espíritos e funcionários censores tanto combaterem-na ou tentarem regulá-la e dirigi-la. A arte atua sobre o mesmo campo da censura: o complexo e talvez dialético jogo entre internalização e externalização de imagens, entre impressão e expressão de sensações e sentidos. Todavia, as fontes pesquisadas e as premissas adotadas me desautorizavam de fazer qualquer leitura maniqueísta que opusesse, sem mais, arte e censura. Os discursos anti-censórios em nome da liberdade de expressão, em geral, ou da liberdade artística, em particular, revelaram-se imiscuídos, ao menos em parte, da lógica censória, algo que transparece em algumas hipóteses que sustento, como a de que a liberdade de expressão e os direitos autorais modernos fundamentam a atual censura de mercado, e como a  de que a autonomia do campo artístico, pensada para se contrapor às inflexões externas dos vários tipos de censura, implica a criação de um cordão sanitário em volta da arte. A pesquisa me levou a compreender o poder político da arte não como uma forma a-histórica, mas como uma força que atua, em conjunto e de modo imbricado com a censura, em distintas cristalizações formais. A arte consistiria, assim, na força que intensifica o estranhamento, o estranhamento com a nossa imagem própria, enquanto a censura tende a produzir a identificação com ela. A força que chamo aqui de "arte" é aquela que tende à metamorfose, enquanto a censura tende à conservação; essa visa atar o ser ao aparecer, aquela visa explorar e experimentar a (in)consistência do "quase-ser" e do "quase-aparecer", experiência que leva ao erro, à inconstância, à aventura. De novo: não se trata de uma visão maniqueísta. Todas as formações políticas e todas as formas artísticas misturam, em diferentes doses, ambas as forças. É provável que seja impossível viver sem censura, o que, aliás, talvez nem seja desejável, pois um mundo sem censura talvez seja o equivalente a um mundo em que as consciências e os corpos são programados. Há indícios, e a ficção científica é a mais clara delas, de que caminhamos a passos largos para um cenário onde a censura parece prescindir de si mesma. Em um cenário como esse, o poder de estranhamento da arte é mais que necessário: precisamos deixar de nos reconhecer nas imagens projetadas de nós, nos projetos político-culturais, no futuro planejado pelas tecnologias atuais de poder.

Em um conto delicioso, ainda que macabramente profético, Raul Pompeia retrata a "singular mania" de um personagem que pede ao médico que retire o seu coração, essa "víscera fatal": "Se o coração se contentasse com o papel fisiológico de fole, de bomba de compressão, e lá se conservasse modestamente, no fundo da sua gaiola de costelas, a trabalhar obscuro e honrado, nas suas diástoles e sístoles, eu não exigiria que mo extraísse como um obstáculo que estraga-me o organismo e a vida; mas o intruso esquece que nasceu para fole, mete-se pelos domínios da existência moral, a fazer concorrência com os sisudos miolos (...)". O coração, explica o personagem, leva ao "exagerado, o exacerbado, o entusiástico, o pródigo, o impensado, o idealista, o fantasioso, o desvairado, o inconveniente", que ameaçam fazer naufragar o positivo, o sério, o grave, o normal, o burguês, o vulgar, o comum, o tranqüilo e o prudente, os ideais de toda censura. Hoje não só as condições técnicas parecem caminhar para permitir, de fato, a substituição do coração por uma bomba artificial, como também se projeta, no plano político e metafísico, a possibilidade, tão desejada pelo personagem de Pompeia, de "lançar-se mão aos freios da estafada cavalgadura de Dom Quixote, que vai desastradamente passeando a gesticulação ossuda do seu entusiasmo cavalheiresco, por entre a vaia das gerações!". Em uma época em que a correção, a limpeza, a higienização física e social, a ascese moral e comportamental parecem ter se internalizado tanto que se tornaram vontades dos sujeitos, a reivindicação do "Mal de Dom Quixote", da doença da literatura, da inconstância da alma feminina de Emma Bovary, possivelmente se apresente como um projeto político-cultural da maior urgência. Ou, ao menos, essa é uma das hipóteses que hoje defendo.



6 de março (terça-feira), 10h30hrs
Palestra de Eduardo Sterzi
Dante Alighieri e a pré-história da lírica moderna
(Sala Machado de Assis/CCE-B/UFSC)


6 a 8 de março (terça a quinta-feira), 14-18hrs
Curso de Fabián Ludueña Romandini
Espectrologia política e ontologia do Fora
(Sala 325/CCE-B/UFSC)  Mais informações aqui


8 de março (quinta-feira), 18:30hrs
Apresentação e lançamento do livro
A comunidade dos espectros. I. Antropotecnia
de Fabián Ludueña Romandini
(Sala 325/CCE-B/UFSC)  Mais informações aqui


Na semana que vem (4 a 7 de outubro), acontece aqui em Florianópolis, o Simpósio Internacional Linguagens e Cultura: Homenagem aos 40 anos dos Programas de Pós-Graduação em Linguística, Literatura e Inglês da UFSC. Merece destaque a mesa "Literatura e Vida", que será no dia 5 (quarta-feira), às 18 horas, no Auditório Henrique Fontes, CCE - Bloco B, e na qual falarão Raúl Antelo, Fabián Ludueña e Emanuele Coccia. Creio que todos dispensam apresentações, mas para quem não conhece Ludueña e Coccia, aqui vão alguns links para textos de/sobre os dois filósofos:

Fabián Ludueña:
Emanuele Coccia:


sopro58.gifEm setembro, saíram dois números do SOPRO, que ainda não divulguei por aqui. O número 58 traz o belíssimo texto de Eduardo Viveiros de Castro, "Transformação" na antropologia, transformação da "antropologia", um balanço de sua vida acadêmica até agora, bem como um mapeamento das perspectivas teóricas e políticas atuais.

Visualizar o Sopro 58 em PDF>> 




sopro59.gifJá o SOPRO 59 vem com a tradução de Profanação, de André Breton, texto que trata do xadrez, que já foi abordado em outro verbete do nosso Dicionário crítico, o Xeque-mate (escrito por Victor da Rosa). Além disso, publicamos mais 3 das Notas para a reconstrução de um mundo perdido, de Flávio de Carvalho: XI: O Bailado do Silêncio; XII: O primeiro chefe e a floresta; XIII: O Samba, a Praça e a Floresta.

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Sopro 56

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O Sopro 56 está no ar. Nesse número, publicamos Maos ao alto: olhos armados, resenha de Remontages du temps subi (L'oeil de l'histoire, 2), de Georges Didi-Huberman, escrita por Vinícius Honesko. De Didi-Huberman já publicamos Atlas - Como levar o mundo nas costas?.

O verbete Quixotismo, de minha autoria, completa o número. Trata-se de um trabalho que apresentei no último Congresso da Abralic, mas que ainda é o esboço de uma hipótese, que pretendo começar a desenvolver em breve. No verbete, algumas coisas não ficaram muito claras, entre as quais: 1) o sentido de "iniciação"; 2) a relação entre romance e mito, e entre literatura, pensamento selvagem e sociedade contra o Estado (o que envolve a idéia de Saer de que a ficção é uma "antropologia especulativa"); 3) o sentido paradigmático que a "literatura" possui na idéia da "literatura como modo de vida", isto é, a literatura em sentido estrito (ficção e poesia) sendo um laboratório para entender a literatura em sentido amplo como modo de vida (para dar um exemplo mais claro do que estou querendo dizer: o marxismo seria talvez o caso mais emblemático da literatura como modo de vida, como religião profana, que possui suas cisões - facções ortodoxas e místicas -, expurgos, etc. Talvez o mais correto fosse dizer que o marxismo encarna duas tendências contrapostas: uma que pretende elevar um livro - O Capital - à condição de Livro, o que leva de volta à sacralização centrípeta; e outra que vê no marxismo uma forma de pensar não-dogmaticamente, ou seja, como força centrífuga); 4) pensar a literatura como sendo essencialmente contra o Estado não é uma exaltação dela, mas um modo de concebê-la estruturalmente, já que ela investiga também as distopias possíveis da passagem do Livro aos livros, e da literatura como modo de vida (pensemos na Biblioteca de Babel borgeana - sugestão de Rodrigo Lopes); 5) pensá-la como a teoria e prática da guerra civil continuada por outros meios é concebê-la como um laboratório para investigações muito mais complexas que os textos e tratados políticos em sentido estrito: desse modo, "A construção" de Kafka ensinaria muito mais sobre a guerrilha (e seus impasses) que os textos de Che Guevara;  6) por fim, como me sugeriu Diego Bentivegna, valeria a pena investigar o episódio de Dom Quixote em que Sancho se torna governador de uma "ilha" à luz da literatura utópica da época.


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Essa semana aconteceu o Antropologia de Raposa, aqui na UFSC, organizado pelo multinatural José Kelly. O coiote, nas mitologias ameríndias - especialmente nas norte-americanas - é uma espécie de trickster, deceptor, malandro, Exu, o vulgar sacana que fode as ações do seu "gêmeo" "invertido", o demiurgo (um Oswald de Andrade mitológico) - e imagino que "raposa" no título do evento se refira ao coiote (ou um equivalente seu), ainda que, aqui no sul do país, chamemos de raposa o que seria o gambá (o trickster absoluto); no que eu possa estar totalmente enganado (é outra possibilidade), o que seria apenas uma prova de que estou certo (o engano me leva ao engano). Seja como for, no evento tomei algumas anotações que deixo aqui como impressões de um leigo, ou melhor, de um amador, de alguém que não entende nada do assunto, mas o ama:

1. A estrela do evento foi Roy Wagner, "inventor" - pra usar um termo caro ao antropólogo - da idéia de "Antropologia de coiote". Sem contar a vivacidade exuberante que exibe aos 75 anos, Wagner, cujas contribuições para a disciplina algum antropólogo (no sentido estrito do termo) pode explicar melhor que eu, é igualmente um antropólogo no sentido forte do termo (isto é, alguém que tem uma teoria sobre o que é um homem, como ele vê o mundo, como se relaciona com esse mundo, como se relaciona com os não-humanos, o que concebe como não-humanos, em suma, uma teoria sobre o homem que não necessariamente é antropomórfica, como era a antropologia kantiana). Sublinhei três entre muitíssimas coisas dignas de nota ditas por Wagner. A primeira foi na abertura do evento, uma exibição de fotos tiradas pelo próprio em 1964 e 1968 na Papua Nova Guiné: a linguagem corporal dos "nativos", "selvagens", "primitivos" - habitantes de uma região colonizada pelos ocidentais só no século XX - era algo por si só indicial (e que já não seria visível alguns anos depois, após as doenças - inclusive o missionarismo - trazidos pelo Ocidente dizimarem esses povos) de uma autonomia (entendida em sentido político e ontológico), que, com a conlonização, acabou. Tal autonomia recebeu de Wagner uma definição precisa e lapidar: é a capacidade de fazer guerra - tirando isso de um povo, mesmo sua linguagem corporal (isto é, a relação que o corpo trava com o mundo, a relação entre os corpos) se perderá, ou seja, se homogenizará com o corpo do modelo dominante. A segunda diz respeito à conferência de Wagner, que apresentou um capítulo do seu novo livro, O Lugar da Invenção: "O xadrez do parentesco e o parentesco do xadrez". Ali ele postulou uma espécie de deslocamento do enfoque das regras de parentesco em si para as três modalidades de relação com essas regras: 1) a relação de respeito; 2) a de evitação; e 3) a jocosa. Creio que se poderia generalizar a hipótese de Wagner e dizer que se tratam de três modos de relação com a Lei (em sentido amplo). É evidente que, nessa generalização, seriam algo como tipos puros que não existem senão mesclados entre si na realidade, mas, mesmo assim, poderiam gerar frutos interessantes nos estudos jurídicos, deslocando o problema da teoria do Direito (o que é a Lei) para uma verdadeira antropologia jurídica (os diversos modos de se relacionar com a Lei - incluindo a questão de porque se obedece a ela). Por fim, a ênfase que Wagner dá ao humor é genial. Em algum livro, baseado em um insight de um aluno de graduação, ele postula que o humor é a melhor forma de compreender qualquer coisa (cito de cabeça uma auto-referência que Wagner fez também de cabeça). E, além disso, que a explicação da piada destrói o saber contido na piada. Imediatamente, pensei em Machado de Assis, cujas ficções (todas humorísticas) parecem conter uma espécie de saber oculto (não à toa, Machado era chamado de "Bruxo") que "pegamos" ao ler, mas que se perde sempre que se tenta explicá-lo (como, por exemplo, na idéia - fora de lugar - das "idéias fora do lugar").

2. Além de Wagner, Eduardo Viveiros de Castro também fez uma belíssima conferência (como disse o Kelly, que também apresentou um trabalho sensacional, mas que eu precisaria ler com cuidado para comentar sem deslizes, só faltou mesmo o Lévi-Strauss), em torno do tema da flecha perdida (a flecha que não chega, a que chega por acaso, a flecha do paradoxo de Zenão que nunca chega ao alvo, etc.) - publicaremos uma variante do texto pela Cultura e Barbárie. Acredito que se fizêssemos uma transposição do tema da flecha à mitologia ocidental moderna, seu equivalente não seria a bala ou o revólver, mas a carta extraviada. A ênfase na linguagem que tomou conta da filosofia (especialmente a partir do século XX) prova isso: por que a linguagem não comunica, por que ela falha, como fazemos para que ela chegue ao seu destinatário, etc, etc? A carta - a escrita - é a flecha, o instrumento bélico ocidental por excelência (Carl Schmitt argumenta que o Novo Mundo pôde ser tomado pelas potências européias pela sua "superioridade espiritual", isto é, pela capacidade de cartografar o mundo em uma totalidade fechada, tornando-o disponível - o que os "primitivos" não poderiam fazer; além disso, cabe lembrar a relação que Lévi-Strauss traça, em "Lição de escrita", entre escrita e hierarquia, escrita e sociedade de classes, etc.). Mas, nem sempre a carta, como a flecha, atinge o alvo. E devemos prestar atenção a esse erro, a esse acidente de percurso - como o faz a literatura (que é, como pretendo adiantar a título provisório num verbete para o Sopro, a continuação da guerra civil por outros meios). Bartleby, o copista do conto de Melville, seria a figura mitológica dessas cartas que se perdem: funcionário exemplar, após ser-lhe pedido que revisasse uma cópia que fez, responde "I would prefer not to", uma fórmula que passará a usar toda vez que lhe solicitem algo. O narrador oferece uma possível explicação para o comportamento do protagonista: ele teria trabalhado na seção de Cartas Extraviadas de uma empresa postal. Ali, se deparou com a contingência, com o fato de que a mensagem (a flecha) se perde, de que uma cópia só por acaso corresponde ao original (como o Quixote que o Pierre Menard borgeano queria escrever, que deveria corresponder totalmente ao de Cervantes, sem ser uma cópia). Uma vasta gama da literatura poderia ser lida sob um enfoque semelhante: "A cartomante" de Machado de Assis, "A carta roubada", de Poe, "O processo" de Kafka (a Lei, essa Carta Magna, só chega a seu destinatário se esse se nomeia como tal). Isso nos leva de volta à tripartição, feita por Wagner, entre as três formas de relação com a Lei, a qual poderíamos acrescentar uma quarta: a relação de desvio, de erro, de acidente. A carta só chega por contingência, o que significa, também, que ela não possui essência, e pode ser - em um gesto político - desviada. O Manifesto da Poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade postula tal desvio (obra de um "primitivo"): "Uma sugestão de Blaise Cendrars : - Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino."


Sopro 55

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Mais um Sopro no ar! Nesse número 55, publicamos o belo verbete Espelho, de Flávia Cera, seguido de mais duas Notas para a reconstrução de um mundo perdido, de Flávio de Carvalho:

IX - A simulação, a Floresta e o Primeiro Temperamento - A Descida da Árvore

X - A mentira e o Soluço do Mundo - A Dança Nasceu na Floresta

Um trechinho da teoria telúrica do Flávio de Carvalho: "É a raiz que liga o homem à terra estabelecendo o seu equilíbrio mental, que forma o temperamento da mesma maneira como as raízes de uma árvore estabelecem e determinam o equilíbrio da árvore."

Clique aqui para visualizar o Sopro 55 em PDF




Eventos

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De 8 a 11 de agosto, acontece, aqui em Florianópolis, o Antropologia de Raposa: Pensando com Roy Wagner, que contará com a presença (além da do autor do clássico A invenção da cultura) do xamã da ATOA, Eduardo Viveiros de Castro. Difícil conseguir encontrar dois dos maiores antropólogos e pensadores do mundo vivos num só lugar.

Clique aqui para ver o cartaz ampliado.


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Além disso, as inscrições para as Segundas Jornadas de Jóvenes Investigadores en Literaturas y Artes Comparadas, organizada por Daniel Link e cia, se encerram dentro de alguns dias (31 de julho). O evento ocorre em dezembro, na UBA (Argentina).

Clique aqui para ver o cartaz em tamanho ampliado; e aqui para acessar a ficha de inscrição.


Sopro 54

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Mais um Sopro no ar. Nesse número 54, apresentamos a tradução feita por Vinícius Honesko de um texto que Murilo Mendes leu de improviso no "Encontro Internacional de Poesia", no quadro da 'EXPO' em Montréal, setembro de 1967. A tradução já havia sido publicada anteriormente no blog Flanagens.

Além disso, uma entrevista que fiz com o jurista, poeta e blogueiro (é dele o melhor blog político-jurídico no ar, O palco e o mundo) Pádua Fernandes. A entrevista se intitula Para que servem os direitos humanos?, e foi feita a partir de um pequeno livro homônimo do Pádua que a editora portuguesa Angelus Novus lançou em 2009. Recomendo a leitura da entrevista (pelas respostas, evidentemente) a todos que se interessam pelas potencialidades (e também pelos limites) dos direitos humanos, pela ligação destes com o campo da ação política. 


padua.jpgA certa altura da entrevista, Pádua lembra de uma bela passagem de Foucault: "A infelicidade dos homens não deve jamais ser um resto mudo da política. Ela fundamenta um direito absoluto de se erguer e se dirigir àqueles que detêm o poder". Quer concordemos ou não em associar tal "direito absoluto" aos direitos humanos, é ele quem fundamenta toda revolta, toda resistência, toda revolução. Ninguém tem o direito de calar sua infelicidade. Como diria Hannah Arendt, "ninguém tem o direito de obedecer". Os direitos negativos são uma miragem legalista criada pelo discurso jurídico dos que detêm o poder. Só há direitos positivos, só há o direito de agir. O direito ao grito é o primeiro, e talvez único, direito humano.

Clique aqui para acessar o Sopro 54 em PDF

P.S.: Aos que têm comentado aqui no blog, peço desculpas por não estar respondendo. Li todos os comentários, e agradeço muito por todos, que sempre me ajudam a repensar meus textos, minhas idéias. Todo pensamento é dialógico, é comum. Só que infelizmente, estou no semestre final do doutorado, então a tese e alguns outros projetos paralelos têm tomado todo o meu tempo, e, por isso, não consigo responder à altura os comentários.


Sopro 53

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No Sopro 53, o sensacional verbete Amor, de D.H. Lawrence, publicado originalmente em 1918. A tradução é minha, com auxílio da Déborah Danowski. Pra quem quiser conferir o original (em inglês), aqui o link prum livro em que o verbete foi republicado.

No mesmo número, mais três das Notas para a reconstrução de um mundo perdido, série de textos de Flávio de Carvalho que estamos republicando no Sopro. As 3 notas que saíram nesse número são:

VI: O culto do herói, o gótico e o barroco
VII: O Sonho e o Herói
VIII: A Floresta e o Gótico

Clique aqui para visualizar o Sopro 53 em PDF (recomendado)


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A editora Cultura e Barbárie acaba de lançar seu terceiro título. Trata-se de Campo de Provas: sobre Nietzsche e o test-drive, de Avital Ronell (autora praticamente não traduzida ao português). O colega Rodrigo Lopes de Barros assina a tradução deste livro de bolso (41 páginas). As páginas iniciais do livro podem ser visualizadas aqui.

Sinopse: O que é um experimento? O que é um teste? O que significa a passagem da experiência entendida como um saber consagrado pelo tempo para a noção de experiência compreendida como experimentação? Avital Ronell busca, em Campo de Provas: sobre Nietzsche e o test-drive, responder a essas questões e decifrar o que está por trás da "pulsão de teste" que se apossa cada vez mais do Ocidente. Seguindo a esteira de Derrida, e d´A gaia ciência nietzschiana, a autora desvenda as aporias do teste e as possibilidades que este abre para uma justiça por-vir.

Fragmento: "Eis a pergunta que trago à mesa: por que o teste tem, ao longo da história, mas talvez hoje mais obstinadamente, chegado a definir nossa relação com as questões da verdade, do conhecimento, e até da realidade? Não é uma questão de escolher entre uma ciência de fato e uma ciência de essência - entre um relato do porquê as coisas são reais ao invés de possíveis. Tampouco é simplesmente uma questão de auto-compreensão tecnológica, como se a reflexão científica sobre seus próprios procedimentos e premissas pudesse satisfazer uma fome filosófica. O termo "posição-sujeito" não cobrirá a calamidade do campo que cerca a vontade de teste. Às vezes, minha chamada posição-sujeito parece reduzida àquela de um coelho tremendo de frio, ou menos glamurosamente frágil, a de um rato, agulhado e entubado, seccionado e acossado pelo tentáculo tecnológico. Como um receptor da demanda invasiva, minhas orelhinhas de coelho estão tremendo - uma figura conjurada por Heidegger para expor a audição exemplar. Eu não sei se meu dispositivo de audição é exemplar, tampouco insisto em sustentar o pathos que impulsiona as imagens reunidas neste lugar. Como um bom receptor nietzschiano, estou afinada para as valorações contraditórias do fenômeno sob consideração."

Clique aqui para comprar o livro

PROMOÇÃO
Aproveitando o jabá, gostaria de anunciar a promoção da editora Cultura e Barbárie: os 3 títulos lançados por R$30 + Frete

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"Direito de ser traduzido, reproduzido e deformado
em todas as línguas"

Alexandre Nodari

é doutorando em Teoria Literária (no CPGL/UFSC), sob a orientação de Raúl Antelo; bolsista do CNPq. Desenvolve pesquisa sobre o conceito de censura.
Editor do
SOPRO.

Currículo Lattes







Alguns textos

"a posse contra a propriedade" (dissertação de mestrado)

O pensamento do fim
(Em: O comum e a experiência da linguagem)

O perjúrio absoluto
(Sobre a universalidade da Antropofagia)

"o Brasil é um grilo de seis milhões de quilômetros talhado em Tordesilhas":
notas sobre o Direito Antropofágico

A censura já não precisa mais de si mesma:
entrevista ao jornal literário urtiga!

Grilar o improfanável:
o estado de exceção e a poética antropofágica

"Modernismo obnubilado:
Araripe Jr. precursor da Antropofagia

O que as datilógrafas liam enquanto seus escrivães escreviam
a História da Filha do Rei, de Oswald de Andrade

Um antropófago em Hollywood:
Oswald espectador de Valentino

Bartleby e a paixão da apatia

O que é um bandido?
(Sobre o plebiscito do desarmamento)

A alegria da decepção
(Resenha de A prova dos nove)

...nada é acidental
(Resenha de quando todos os acidentes acontecem)

Entrevista com Raúl Antelo


Work-in-progress

O que é o terror?

A invenção do inimigo:
terrorismo e democracia

Censura, um paradigma

Perjúrio: o seqüestro dos significantes na teoria da ação comunicativa

Para além dos direitos autorais

Arte, política e censura

Censura, arte e política

Catão e Platão:
poetas, filósofos, censores






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