Abaixo, o texto de apresentação da minha tese de doutorado:
A tese que agora apresento nasceu de um espanto seguido de um insight. Na fase final do meu mestrado sobre a Antropofagia de Oswald de Andrade, eu relia partes de sua obra que não haviam entrado no corpus de minha dissertação, já pensando em me dedicar a alguma delas no doutorado. Foi quando me deparei com a lista de alterações textuais que a censura da ditadura militar brasileira impôs à peça O rei da vela para que ela pudesse ser liberada e encenada pelo Teatro Oficina. O susto derivou do fato de que as mudanças exigidas ou negociadas nada modificavam o drama, isto é, a ação da peça, altamente política, ideológica e mesmo panfletária, explicitamente panfletária. As alterações todas eram "apenas" formais, ou, para ser mais exato, substituíam certos substantivos, desferencializando-os e eufemizando-os. O insight consistiu em ver nesse tipo de modificação imposta pela censura, mais do que na proibição pura e simples, um paradigma de funcionamento do poder censório, ou seja, um exemplo que explicasse a fundo o que é e como funciona a censura. O pano de fundo do insight eram dois pressupostos político-epistemológicos: 1) o primeiro: levar a sério o poder, confiar na sua astúcia, imaginar sempre e toda hora que eles sempre sabem o que fazem; 2) o segundo: conceber o poder não apenas como repressor, mas também e primordialmente, como produtor - ou seja, seguindo Foucault, ver não apenas a faceta negativa, proibitiva, do poder, mas também a positiva, a criadora. Além disso, o contexto da censura a O rei da vela parecia realçar seu valor paradigmático: por um lado, a encenação da peça pelo Teatro Oficina foi um marco cultural nos anos 1960 e 1970, especialmente para o chamado Tropicalismo, e, por outro, as ditaduras latino-americanas desse período foram (e o pensamento eurocêntrico parece incapaz de compreender isso) laboratórios que adiantaram e testaram as tecnologias do poder que hoje estão em curso - especialmente no plano da dominação política e cultural, mas também no plano econômico: a Grécia que o diga, caminhando, como está, para ser um Chile de segunda classe.
O passo seguinte do percurso foi, obviamente, a pesquisa propriamente dita, que agora defendo. Tratava-se de desvendar, a partir de um caso concreto de censura, o arcabouço de sua lógica profunda, de sua ratio, ou seja, de seguir uma máxima do jovem Marx: "Os riscos do censor representam para a imprensa o mesmo que os 'Kuas' representam para o pensamento chinês. Os 'Kuas' dos censores são as categorias da literatura e, como se sabe, as categorias são a base de um conteúdo mais extenso". Os "kuas" ou "kua" são signos de 3 ou 6 linhas sobrepostas de que se compõe o I-Ching, ou seja, conjuntos de simples traços por trás dos quais há um pensamento, um saber complexo que pode ser decifrado. O que eu não sabia, à época do início da empreitada, era o quão extenso era esse "conteúdo mais extenso" aos quais os riscos e alterações dos censores serviam de índices. A tentativa de desvelar, a partir de um exemplo concreto, a teoria da linguagem que guia a censura fez a investigação se ramificar, um tanto erraticamente, em uma série diversa e múltipla de fronts: os casos de censura durante a ditadura militar brasileira e o discurso oficial que a fundamentava; a formulação da censura pela teoria política moderna; o caso clássico do banimento dos poetas da República de Platão; a reivindicação da função censora por artistas e jornalistas; a magistratura do Censor da Roma antiga; o conceito psicanalítico de censura; a relação entre censura e direitos autorais, etc. Havia, apesar da disparidade de fontes, períodos e localidades sobre os quais me debrucei, um certo padrão no discurso censório e no discurso sobre a censura. Tal padrão se mostrava visível, para começar, no vocabulário sensorial, corpóreo, médico-biológico utilizado para caracterizar a necessidade da censura: o perigo da corrupção, contaminação, doença, infecção, etc. Ele se revelava também no âmbito de atuação atribuído à censura: a esfera aonde a lei não chega, a esfera dos costumes, dos comportamentos, da vestimenta, do discurso, da arte, etc. A censura aparecia, na quase totalidade dos discursos em sua defesa, como um suplemento à lei, mas um suplemento de tipo especial, sem o qual a própria lei não se sustentaria: um suplemento fundamental, se me permitem o oxímoro quase derrideano. Além disso, no discurso censório, política e moral dificilmente se diferenciavam: um vício moral poderia levar à dissidência política, assim como o teatro poderia levar a uma reviravolta na hierarquia civil.
O desafio que se apresentava era conceitualizar tal padrão, estabelecer terminológica e argumentativamente o regime dessa tecnologia de poder que atende pelo nome de censura. O primeiro passo que dei na tentativa dessa conceitualização foi afirmar a inseparabilidade entre o censo (contagem e classificação), por um lado, e a censura (controle e proibição), por outro. Tal inseparabilidade não aparecia apenas no Censor da Roma antiga, responsável tanto pelo censeamento da população quanto pela regulação de seus costumes, mas no discurso censório como um todo, especialmente naquele dirigido contra a arte: assim, Platão expurga a poesia de sua polis ideal em nome do metron, e uma série de proibições modernas de obras artísticas se dão contra o excesso, e em nome da moderação ou da temperança. Se toda medida censora aplicava-se para manter ou criar uma medida, então, era possível deixar de compreender a censura como pura arbitrariedade obscurantista, tendo como motivo ou objetivo a manutenção ou instituição de um padrão definível.
A segunda grande etapa de rearranjo conceitual do material pesquisado se deu depois da leitura de A vida sensível, de Emanuele Coccia. Apesar de grande parte das leituras contemporâneas da censura relacionarem-na à verdade, concebendo-a como uma forma de mascarar, ocultar ou banir verdades indesejáveis, ou então, de produzir verdades dóceis, a verdade e a mentira não parecem ser, em absoluto, o campo em que a censura age, algo que se percebe claramente nas defesas, teorizações e reivindicações da censura, sejam clássicas, sejam modernas. A produção ou destruição da verdade parece ser um sub-produto, um dano colateral da censura, que se preocupa muito mais pelos efeitos sensíveis que um discurso, uma imagem, um costume, seja verdadeiro, seja falso, pode produzir: ela deve evitar a contaminação sensorial-moral-política. De fato, uma rápida pesquisa em qualquer arquivo de aparatos censores mostra que obras e discursos favoráveis ao regime de plantão foram banidas devido a forma em que os apoios se apresentavam. A censura atua, antes de mais nada, nos modos e nas modas, nos costumes, e almeja estabelecer e controlar o regime de funcionamento e circulação do sensível, por meio de sua hierarquização e avaliação político-moral.
O último passo na formulação do padrão do poder censório só ficou claro para mim muito recentemente, o que talvez explique certas inconsistências retóricas e argumentativas presentes na minha tese. Aliás, a caracterização que faço do texto como "ensaio" não remete a alguma teoria ou metodologia específica do "ensaio", seja de Montaigne, um de meus pensadores preferidos, seja de Adorno (o ensaio como forma), mas deve ser tomada literalmente: como uma tentativa, uma preparação provisória, um esboço que talvez nunca chegue a sua forma definitiva. Seja como for, as fontes terminaram por me levar à idéia de que a censura é a medida que regula o sensível, normatizando e controlando a passagem do interno ao externo, as internalizações e externalizações de imagens pelos sujeitos. A censura visa con-formar o sujeito a uma imagem político-moral de conduta, e, para tanto, deve buscar interiorizá-la, e controlar exteriorizações não desejáveis, moldando-as a um exemplo. A fonte do poder e também da necessidade da censura é o hiato que existe entre o ser e o aparecer sociais: o poder político-moral, enquanto tendencialmente distinto da força física, não consegue, ou, ao menos, não tem a certeza de conseguir, penetrar no âmago do sujeito, nas consciências ou nas vísceras - ele só pode agir sobre as manifestações e expressões: daí a necessidade, para o poder, não só da censura, quanto da propaganda. A censura existe e existirá enquanto não se inventar uma máquina de ler e produzir pensamentos e instintos. Na medida em que a lei só pode atingir ações, atos, existe sempre a possibilidade de mimetizar, falsificar, fingir, aparentar, por meio de uma série de declinações que o poder censório tenta controlar.
Essa determinação do campo e modus operandi da censura me permitiu entender melhor em que consistia o poder político da arte e o porquê dos espíritos e funcionários censores tanto combaterem-na ou tentarem regulá-la e dirigi-la. A arte atua sobre o mesmo campo da censura: o complexo e talvez dialético jogo entre internalização e externalização de imagens, entre impressão e expressão de sensações e sentidos. Todavia, as fontes pesquisadas e as premissas adotadas me desautorizavam de fazer qualquer leitura maniqueísta que opusesse, sem mais, arte e censura. Os discursos anti-censórios em nome da liberdade de expressão, em geral, ou da liberdade artística, em particular, revelaram-se imiscuídos, ao menos em parte, da lógica censória, algo que transparece em algumas hipóteses que sustento, como a de que a liberdade de expressão e os direitos autorais modernos fundamentam a atual censura de mercado, e como a de que a autonomia do campo artístico, pensada para se contrapor às inflexões externas dos vários tipos de censura, implica a criação de um cordão sanitário em volta da arte. A pesquisa me levou a compreender o poder político da arte não como uma forma a-histórica, mas como uma força que atua, em conjunto e de modo imbricado com a censura, em distintas cristalizações formais. A arte consistiria, assim, na força que intensifica o estranhamento, o estranhamento com a nossa imagem própria, enquanto a censura tende a produzir a identificação com ela. A força que chamo aqui de "arte" é aquela que tende à metamorfose, enquanto a censura tende à conservação; essa visa atar o ser ao aparecer, aquela visa explorar e experimentar a (in)consistência do "quase-ser" e do "quase-aparecer", experiência que leva ao erro, à inconstância, à aventura. De novo: não se trata de uma visão maniqueísta. Todas as formações políticas e todas as formas artísticas misturam, em diferentes doses, ambas as forças. É provável que seja impossível viver sem censura, o que, aliás, talvez nem seja desejável, pois um mundo sem censura talvez seja o equivalente a um mundo em que as consciências e os corpos são programados. Há indícios, e a ficção científica é a mais clara delas, de que caminhamos a passos largos para um cenário onde a censura parece prescindir de si mesma. Em um cenário como esse, o poder de estranhamento da arte é mais que necessário: precisamos deixar de nos reconhecer nas imagens projetadas de nós, nos projetos político-culturais, no futuro planejado pelas tecnologias atuais de poder.
Em um conto delicioso, ainda que macabramente profético, Raul Pompeia retrata a "singular mania" de um personagem que pede ao médico que retire o seu coração, essa "víscera fatal": "Se o coração se contentasse com o papel fisiológico de fole, de bomba de compressão, e lá se conservasse modestamente, no fundo da sua gaiola de costelas, a trabalhar obscuro e honrado, nas suas diástoles e sístoles, eu não exigiria que mo extraísse como um obstáculo que estraga-me o organismo e a vida; mas o intruso esquece que nasceu para fole, mete-se pelos domínios da existência moral, a fazer concorrência com os sisudos miolos (...)". O coração, explica o personagem, leva ao "exagerado, o exacerbado, o entusiástico, o pródigo, o impensado, o idealista, o fantasioso, o desvairado, o inconveniente", que ameaçam fazer naufragar o positivo, o sério, o grave, o normal, o burguês, o vulgar, o comum, o tranqüilo e o prudente, os ideais de toda censura. Hoje não só as condições técnicas parecem caminhar para permitir, de fato, a substituição do coração por uma bomba artificial, como também se projeta, no plano político e metafísico, a possibilidade, tão desejada pelo personagem de Pompeia, de "lançar-se mão aos freios da estafada cavalgadura de Dom Quixote, que vai desastradamente passeando a gesticulação ossuda do seu entusiasmo cavalheiresco, por entre a vaia das gerações!". Em uma época em que a correção, a limpeza, a higienização física e social, a ascese moral e comportamental parecem ter se internalizado tanto que se tornaram vontades dos sujeitos, a reivindicação do "Mal de Dom Quixote", da doença da literatura, da inconstância da alma feminina de Emma Bovary, possivelmente se apresente como um projeto político-cultural da maior urgência. Ou, ao menos, essa é uma das hipóteses que hoje defendo.
A tese que agora apresento nasceu de um espanto seguido de um insight. Na fase final do meu mestrado sobre a Antropofagia de Oswald de Andrade, eu relia partes de sua obra que não haviam entrado no corpus de minha dissertação, já pensando em me dedicar a alguma delas no doutorado. Foi quando me deparei com a lista de alterações textuais que a censura da ditadura militar brasileira impôs à peça O rei da vela para que ela pudesse ser liberada e encenada pelo Teatro Oficina. O susto derivou do fato de que as mudanças exigidas ou negociadas nada modificavam o drama, isto é, a ação da peça, altamente política, ideológica e mesmo panfletária, explicitamente panfletária. As alterações todas eram "apenas" formais, ou, para ser mais exato, substituíam certos substantivos, desferencializando-os e eufemizando-os. O insight consistiu em ver nesse tipo de modificação imposta pela censura, mais do que na proibição pura e simples, um paradigma de funcionamento do poder censório, ou seja, um exemplo que explicasse a fundo o que é e como funciona a censura. O pano de fundo do insight eram dois pressupostos político-epistemológicos: 1) o primeiro: levar a sério o poder, confiar na sua astúcia, imaginar sempre e toda hora que eles sempre sabem o que fazem; 2) o segundo: conceber o poder não apenas como repressor, mas também e primordialmente, como produtor - ou seja, seguindo Foucault, ver não apenas a faceta negativa, proibitiva, do poder, mas também a positiva, a criadora. Além disso, o contexto da censura a O rei da vela parecia realçar seu valor paradigmático: por um lado, a encenação da peça pelo Teatro Oficina foi um marco cultural nos anos 1960 e 1970, especialmente para o chamado Tropicalismo, e, por outro, as ditaduras latino-americanas desse período foram (e o pensamento eurocêntrico parece incapaz de compreender isso) laboratórios que adiantaram e testaram as tecnologias do poder que hoje estão em curso - especialmente no plano da dominação política e cultural, mas também no plano econômico: a Grécia que o diga, caminhando, como está, para ser um Chile de segunda classe.
O passo seguinte do percurso foi, obviamente, a pesquisa propriamente dita, que agora defendo. Tratava-se de desvendar, a partir de um caso concreto de censura, o arcabouço de sua lógica profunda, de sua ratio, ou seja, de seguir uma máxima do jovem Marx: "Os riscos do censor representam para a imprensa o mesmo que os 'Kuas' representam para o pensamento chinês. Os 'Kuas' dos censores são as categorias da literatura e, como se sabe, as categorias são a base de um conteúdo mais extenso". Os "kuas" ou "kua" são signos de 3 ou 6 linhas sobrepostas de que se compõe o I-Ching, ou seja, conjuntos de simples traços por trás dos quais há um pensamento, um saber complexo que pode ser decifrado. O que eu não sabia, à época do início da empreitada, era o quão extenso era esse "conteúdo mais extenso" aos quais os riscos e alterações dos censores serviam de índices. A tentativa de desvelar, a partir de um exemplo concreto, a teoria da linguagem que guia a censura fez a investigação se ramificar, um tanto erraticamente, em uma série diversa e múltipla de fronts: os casos de censura durante a ditadura militar brasileira e o discurso oficial que a fundamentava; a formulação da censura pela teoria política moderna; o caso clássico do banimento dos poetas da República de Platão; a reivindicação da função censora por artistas e jornalistas; a magistratura do Censor da Roma antiga; o conceito psicanalítico de censura; a relação entre censura e direitos autorais, etc. Havia, apesar da disparidade de fontes, períodos e localidades sobre os quais me debrucei, um certo padrão no discurso censório e no discurso sobre a censura. Tal padrão se mostrava visível, para começar, no vocabulário sensorial, corpóreo, médico-biológico utilizado para caracterizar a necessidade da censura: o perigo da corrupção, contaminação, doença, infecção, etc. Ele se revelava também no âmbito de atuação atribuído à censura: a esfera aonde a lei não chega, a esfera dos costumes, dos comportamentos, da vestimenta, do discurso, da arte, etc. A censura aparecia, na quase totalidade dos discursos em sua defesa, como um suplemento à lei, mas um suplemento de tipo especial, sem o qual a própria lei não se sustentaria: um suplemento fundamental, se me permitem o oxímoro quase derrideano. Além disso, no discurso censório, política e moral dificilmente se diferenciavam: um vício moral poderia levar à dissidência política, assim como o teatro poderia levar a uma reviravolta na hierarquia civil.
O desafio que se apresentava era conceitualizar tal padrão, estabelecer terminológica e argumentativamente o regime dessa tecnologia de poder que atende pelo nome de censura. O primeiro passo que dei na tentativa dessa conceitualização foi afirmar a inseparabilidade entre o censo (contagem e classificação), por um lado, e a censura (controle e proibição), por outro. Tal inseparabilidade não aparecia apenas no Censor da Roma antiga, responsável tanto pelo censeamento da população quanto pela regulação de seus costumes, mas no discurso censório como um todo, especialmente naquele dirigido contra a arte: assim, Platão expurga a poesia de sua polis ideal em nome do metron, e uma série de proibições modernas de obras artísticas se dão contra o excesso, e em nome da moderação ou da temperança. Se toda medida censora aplicava-se para manter ou criar uma medida, então, era possível deixar de compreender a censura como pura arbitrariedade obscurantista, tendo como motivo ou objetivo a manutenção ou instituição de um padrão definível.
A segunda grande etapa de rearranjo conceitual do material pesquisado se deu depois da leitura de A vida sensível, de Emanuele Coccia. Apesar de grande parte das leituras contemporâneas da censura relacionarem-na à verdade, concebendo-a como uma forma de mascarar, ocultar ou banir verdades indesejáveis, ou então, de produzir verdades dóceis, a verdade e a mentira não parecem ser, em absoluto, o campo em que a censura age, algo que se percebe claramente nas defesas, teorizações e reivindicações da censura, sejam clássicas, sejam modernas. A produção ou destruição da verdade parece ser um sub-produto, um dano colateral da censura, que se preocupa muito mais pelos efeitos sensíveis que um discurso, uma imagem, um costume, seja verdadeiro, seja falso, pode produzir: ela deve evitar a contaminação sensorial-moral-política. De fato, uma rápida pesquisa em qualquer arquivo de aparatos censores mostra que obras e discursos favoráveis ao regime de plantão foram banidas devido a forma em que os apoios se apresentavam. A censura atua, antes de mais nada, nos modos e nas modas, nos costumes, e almeja estabelecer e controlar o regime de funcionamento e circulação do sensível, por meio de sua hierarquização e avaliação político-moral.
O último passo na formulação do padrão do poder censório só ficou claro para mim muito recentemente, o que talvez explique certas inconsistências retóricas e argumentativas presentes na minha tese. Aliás, a caracterização que faço do texto como "ensaio" não remete a alguma teoria ou metodologia específica do "ensaio", seja de Montaigne, um de meus pensadores preferidos, seja de Adorno (o ensaio como forma), mas deve ser tomada literalmente: como uma tentativa, uma preparação provisória, um esboço que talvez nunca chegue a sua forma definitiva. Seja como for, as fontes terminaram por me levar à idéia de que a censura é a medida que regula o sensível, normatizando e controlando a passagem do interno ao externo, as internalizações e externalizações de imagens pelos sujeitos. A censura visa con-formar o sujeito a uma imagem político-moral de conduta, e, para tanto, deve buscar interiorizá-la, e controlar exteriorizações não desejáveis, moldando-as a um exemplo. A fonte do poder e também da necessidade da censura é o hiato que existe entre o ser e o aparecer sociais: o poder político-moral, enquanto tendencialmente distinto da força física, não consegue, ou, ao menos, não tem a certeza de conseguir, penetrar no âmago do sujeito, nas consciências ou nas vísceras - ele só pode agir sobre as manifestações e expressões: daí a necessidade, para o poder, não só da censura, quanto da propaganda. A censura existe e existirá enquanto não se inventar uma máquina de ler e produzir pensamentos e instintos. Na medida em que a lei só pode atingir ações, atos, existe sempre a possibilidade de mimetizar, falsificar, fingir, aparentar, por meio de uma série de declinações que o poder censório tenta controlar.
Essa determinação do campo e modus operandi da censura me permitiu entender melhor em que consistia o poder político da arte e o porquê dos espíritos e funcionários censores tanto combaterem-na ou tentarem regulá-la e dirigi-la. A arte atua sobre o mesmo campo da censura: o complexo e talvez dialético jogo entre internalização e externalização de imagens, entre impressão e expressão de sensações e sentidos. Todavia, as fontes pesquisadas e as premissas adotadas me desautorizavam de fazer qualquer leitura maniqueísta que opusesse, sem mais, arte e censura. Os discursos anti-censórios em nome da liberdade de expressão, em geral, ou da liberdade artística, em particular, revelaram-se imiscuídos, ao menos em parte, da lógica censória, algo que transparece em algumas hipóteses que sustento, como a de que a liberdade de expressão e os direitos autorais modernos fundamentam a atual censura de mercado, e como a de que a autonomia do campo artístico, pensada para se contrapor às inflexões externas dos vários tipos de censura, implica a criação de um cordão sanitário em volta da arte. A pesquisa me levou a compreender o poder político da arte não como uma forma a-histórica, mas como uma força que atua, em conjunto e de modo imbricado com a censura, em distintas cristalizações formais. A arte consistiria, assim, na força que intensifica o estranhamento, o estranhamento com a nossa imagem própria, enquanto a censura tende a produzir a identificação com ela. A força que chamo aqui de "arte" é aquela que tende à metamorfose, enquanto a censura tende à conservação; essa visa atar o ser ao aparecer, aquela visa explorar e experimentar a (in)consistência do "quase-ser" e do "quase-aparecer", experiência que leva ao erro, à inconstância, à aventura. De novo: não se trata de uma visão maniqueísta. Todas as formações políticas e todas as formas artísticas misturam, em diferentes doses, ambas as forças. É provável que seja impossível viver sem censura, o que, aliás, talvez nem seja desejável, pois um mundo sem censura talvez seja o equivalente a um mundo em que as consciências e os corpos são programados. Há indícios, e a ficção científica é a mais clara delas, de que caminhamos a passos largos para um cenário onde a censura parece prescindir de si mesma. Em um cenário como esse, o poder de estranhamento da arte é mais que necessário: precisamos deixar de nos reconhecer nas imagens projetadas de nós, nos projetos político-culturais, no futuro planejado pelas tecnologias atuais de poder.
Em um conto delicioso, ainda que macabramente profético, Raul Pompeia retrata a "singular mania" de um personagem que pede ao médico que retire o seu coração, essa "víscera fatal": "Se o coração se contentasse com o papel fisiológico de fole, de bomba de compressão, e lá se conservasse modestamente, no fundo da sua gaiola de costelas, a trabalhar obscuro e honrado, nas suas diástoles e sístoles, eu não exigiria que mo extraísse como um obstáculo que estraga-me o organismo e a vida; mas o intruso esquece que nasceu para fole, mete-se pelos domínios da existência moral, a fazer concorrência com os sisudos miolos (...)". O coração, explica o personagem, leva ao "exagerado, o exacerbado, o entusiástico, o pródigo, o impensado, o idealista, o fantasioso, o desvairado, o inconveniente", que ameaçam fazer naufragar o positivo, o sério, o grave, o normal, o burguês, o vulgar, o comum, o tranqüilo e o prudente, os ideais de toda censura. Hoje não só as condições técnicas parecem caminhar para permitir, de fato, a substituição do coração por uma bomba artificial, como também se projeta, no plano político e metafísico, a possibilidade, tão desejada pelo personagem de Pompeia, de "lançar-se mão aos freios da estafada cavalgadura de Dom Quixote, que vai desastradamente passeando a gesticulação ossuda do seu entusiasmo cavalheiresco, por entre a vaia das gerações!". Em uma época em que a correção, a limpeza, a higienização física e social, a ascese moral e comportamental parecem ter se internalizado tanto que se tornaram vontades dos sujeitos, a reivindicação do "Mal de Dom Quixote", da doença da literatura, da inconstância da alma feminina de Emma Bovary, possivelmente se apresente como um projeto político-cultural da maior urgência. Ou, ao menos, essa é uma das hipóteses que hoje defendo.
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