I
Hannah Arendt dizia que quando pessoas - sempre no plural, sempre mais de uma, sejam dois ou três gatos pingados, sejam 300, sejam 100 mil - se reúnem em praça pública, ali nasce a política (que ela também chamava de "poder", no sentido de potência, de criação do Novo, ligado à condição humana da natalidade: todo nascimento é um recomeço, um começo a partir do zero). Assim que estas pessoas se dispersam, morre a política, o poder criado pela sua reunião perde sua efetividade. Diametralmente oposto seria a violência: enquanto instrumento, enquanto técnica, ela permite a concentração e prescinde da multiplicidade. Enquanto a "fórmula" tendencial da política seria o "Todos contra Um", a da violência seria o "Um contra Todos". É interessante que Arendt evite falar em universalidade, ainda que fale em "Todos": a política pressupõe a pluralidade e a idéia de universal é uma forma de capturar o Todos no "Um", da mesma maneira que o consenso. As instituições nascem como uma espécie de meio termo (ainda que Arendt não diga explicitamente isso) entre poder e violência: buscam resolver a questão de como manter a política diante da outra condição humana, a mortalidade: como manter a política para além da reunião dos homens em praça pública? As instituições são uma tentativa de instrumentalizar a violência para a manutenção da política para além do seu acontecimento fugaz. A degeneração de nossas instituições políticas a convertem cada vez mais em instituições de pura violência, em instituições que se voltam contra o Todos em favor do Um. O caso das passagens aéreas do Congresso, o programa de Pilhagem aérea (em referência aos programas de milhagem das companhias), como bem o caracterizou José Simão, é apenas um sintoma disso. O sintoma mais forte, a meu ver, não é
Gilmar Mendes, como apontou o amigo Idelber Avelar; para mim, ele continua sendo Daniel Dantas. É este homem que aparelha todas as instituições, o Estado brasileiro (e a mídia, ou seja, o que temos de esfera pública institucionalizada) na sua quase integralidade, a seu favor. Dantas é, hoje, o Um contra Todos, ele personifica a violência que atenta contra a política (personifica, porque é ele mesmo apenas emblema do chamado capitalismo de acesso, o capitalismo não produtivo, essencialmente financista que se limita a controlar fluxos, a gerenciar contatos); Gilmar Mendes é apenas um dos
lados passivos da equação.
II
Sempre achei - e devo isso a leitura de Arendt - que o mais bonito das manifestações políticas, das reuniões políticas, dos comícios, não era propriamente o objetivo deles, mas o estar-junto que deles emanava, o acontecimento, efêmero, da política (em 2005, presenciei, em um ponto de ônibus uma conversa entre duas meninas, em que uma delas comentava eufórica que havia convencido o pai a levá-la a uma manifestação do passe livre; na conversa, não emitiu nenhuma opinião sobre a causa em si, não parecia que esta era era tão importante quanto à manifestação em si - não se tratava de despolitização, mas de política em seu grau zero). Ou seja, não o que era comunicado, mas a própria comunicabilidade. A política é comum aos homens não porque eles tenham um objetivo em comum, mas porque o mundo é comum - e o mundo não é algo que simplesmente reúne, ele é, para usar mais uma vez a explicação de Arendt, como uma mesa que se coloca entre os homens, que ao mesmo tempo que os separa, os reúne. É isto a esfera pública, é por isto que a política só pode se dar em praça pública, onde as diferenças do âmbito privado são anuladas, mas não em todo (o nazismo, e o racismo mais em geral, é a tentativa de eliminar por completo as diferenças privadas no espaço público). É por isso que é essencial que os membros de nossas instituições saiam as ruas. Senão eles estarão apenas comprovando que não passam de agentes da violência.

III
A grande tarefa política de nossa geração, acredito, seja criar uma esfera pública, um mundo compartilhado que prescinda de instituições - o que Giorgio Agamben chama de Ingovernável (que ele prefere à idéia de anarquia, argumentando que esta é inerente a todo governo). (Mas ao contrário do filósofo italiano que vê na internet apenas mais um dispositivo de captura da vida, não um instrumento neutro que varia do modo como é utilizado (o argumento dele é complicado, porque partindo dele teríamos que negar também o telefone, a correspondência postal, a escrita, e, por fim, a própria linguagem), acredito que ela pode desempenhar um papel essencial nesta tarefa.) "Pouco importa" se Gilmar Mendes renunciará ou sofrerá impeachment (honestamente creio que não acontecerá): o que tem de ficar, não só entre os 300 manifestantes de Brasília, mas também entre os milhões de internautas envolvidos no tema, é o mundo compartilhado que o protesto criou - este precisa sobreviver à causa em si (como não aconteceu em um movimento como o Passe Livre em Florianópolis, que juntou muito mais gente em teoria "despolitizada", mas por ser incapaz de criar um espaço além da causa, naufragou - e, diga-se de passagem, por tabela, a causa também). É preciso fazer renascer todo dia o mundo da política, aquele espaço público da potência da criação e da felicidade de estar-junto, única forma capaz de derrotar a violência, o Um, por ser comum e jamais concentrado. A política, ao contrário da violência, é o lugar onde o poder de um é já o poder de todos (e não o contrário), o lugar onde, parafraseando Agamben, se eu posso, somos já muitos.
(Link da fonte da segunda foto)
Comentários recentes